Amarrava às tralhas na Belina 75 e pensava – “fundar os nexos para os que ouvem; entreter uma plateia com uma fatia risonha do meu tempo.” Engarrafado no fluxo de cores, cheiros e movimentos, Seu Alfredo desviava do trânsito que ora parecia constituído de carros, ora de cápsulas de energias radiantes, prisma incontido de luz matinal. A Belina 75, batizada nos idos de 78 de Dona Camélia, gemia, dobrava, ela o sustentáculo de inúmeros poderes técnicos e espirituais. Deslocava-se no contínuo espaço-tempo como um ancião do contínuo espaço-tempo. Distinguia à chuva fina do orvalho a repousar numa gota, na lâmina fina da espada da grama. Seu Alfredo, rumo ao Balneário do 29, um poço profundo no Aquífero Guarani, um Oceano de si mesmo a inundar às coisas.
Preparou anteriormente a caneta e o papel – 2 canetas e uma caderneta – para ditar ao mundo suas verdades e mentiras, ou seja, para articular num vocabulário novo e secreto o enigma a desvendar-lhe o coração, a codificar os sonhos, transmitindo continuidade: “Escrever é a função básica do átomo, fragmento de algo, relíquia rara, jogo e instrumento musical antigo e desconhecido. Seu Alfredo dançava e cantava à beira da lagoa, pronto para retirar das águas seres apaziguadores de sua solidão. Seu Alfredo pensava-se só, muito sozinho, único sem duplo, sossegado, desacompanhado, desempedido, ora livre ora atado aos grilhões que gostava de – às vezes – carregar. Quando pegava uma tilápia gordinha, colocava-a num balde e começava a contar suas estórias, primeiro às contava, depois às ouvia, somente por último às escrevia, aqui para o Jornal Morto: “Pode-se fagocitar à alma morta de um animal, mas é óbvio que aquela parcela de morte cobrará sua tarifa do corpo hospedeiro.”
Um dia, às margens do saudoso lago do 29, Seu Alfredo presenciou um fenômeno natural in loco que, entre muitos outros que viveu naquela semana, selecionou como o artigo da semana para o Compêndio de Filosofia Prosaica: “Não era do céu a chuva, vi com esses olhos marrons de radar vivo a oscilar conforme a música: vi que o 29 é que chovia. Ou seja, o lago do 29 choveu no céu.” Fato científico registrado pela letra perspicaz de Seu Alfredo, um sujeito mateiro a molhar-se nas enxurradas.
Enquanto esperava pela fisgada, a que chamava de “resgate” dos peixes, observava o hábito de caça do Martim-Pescador e concluía: “O anzol ludibria o peixe, o Martim-Pescador o vence”, que aproveitava para anotar para o Diário de Ornitologia São-Carlense.
A cada peixe que pescava, relembrava das vezes que fora abduzido, onde lhe contavam coisas num alfabeto ora estranho, ora familiar, ora estranhamente familiar.
Levava às minhocas de casa, prometendo não trespassá-las com o aço do anzol, se o Sindicato das Minhocas decidisse por apenas agarrarem-se no submarino – Seu Alfredo explicou-as que aquilo era um submarino – como dissertou, há muitas primaveras atrás, seu pai, Teodorico IV.
E Seu Alfredo despedia-se da plateia no final da tarde. “Aqui é vivo: inviolável”. Seguia a então famosa “lei do foda-se”, mais uma das heranças do Tijuco, como um grupo de hienas persegue um bizão solitário. Considera simples a lei do foda-se: reduzir ao absurdo qualquer possibilidade de redenção, qualquer pretensão humana por demais, por carreira, luxo e escalada social. Essa lei, arregimentada no cartório das crenças e desejos de Seu Alfredo, garantia-lhe imunidade perante a doença do Século XXI, que infecta das mais limitadas as mais grandiosas mentes, o devasso aumento do poder de forma não natural, confundindo o grão de areia com a montanha.
Contentava-se com quase nada. Aprendera que gigantes podem desviar seus passos das criaturas menores, que há uma beleza revolucionária na paz, na calmaria, na pobreza e na carência.
Seguia à doutrina filosófica do Esteticismo, que erigira como contrária ao Humanitismo de Quincas Borba, que conferia uma parte na ordenação da beleza cósmica a todos, não importando cores, raças, vontades e procedências. O Esteticismo propunha à ideia do signo atômico, uma mônada primordial, um big-bang semântico por segundo, que engendra à molécula da frase, tecendo o tecido do parágrafo, botão do texto, da flor do romance. A narrativa como uma mãe alegre que não cansa jamais.
Por isso contava histórias, para entreter outrem, exatamente ao lidar com a essência da vida, o ponto arquimediano do real, inerente à fábula, lenda, cosmogonia, poema ilimitado, epopeias, odes, cancioneiros, etc.
Certa vez encarou por horas um pescador do outro lado do 29. O sol judiava, irradiando para todos (a sombra só para os escolhidos). Um chapéu de palha cobria uma cabeça no céu austral. Pensou que daquele outro lado do rio poderia haver outro escritor, outro Seu Alfredo Diviaggi, outro narrador profissional do encadeamento inequívoco das coisas, outro seguidor da lei do foda-se, que brota do Esteticismo visceral que profetizava com veemência. Em vez de dar a volta no lago a pé, para perguntar para o outro se ele era um mero espelho de si mesmo, Seu Alfredo preferiu considerá-lo uma ilusão de ótica, a típica sombra de ilusão a enublar a tudo. Apenas mais uma tilápia sendo ludibriada por Seus Alfredos ou vencida por Martins-Pescadores, transmitindo ou recebendo mensagens de outras tilápias ou alienígenas, que sugam para outros níveis. Uma grande orquestra regida pelo caos dos personagens fictícios com instrumentos etéreos tão sólidos como o ar, com sustenidos e bemóis gorjeados por pássaros que sempre voltam em revoadas tristes, fênix imortal a bater asas enormes, sonhos selvagens, retroescavadeira imparável.
E voltava para casa com crise de riso, tirando sarro da casualidade histórica dos tipos estranhos a passar. Juntava o castigo de Sancho Pança ao ser manteado com A Relíquia de Eça de Queirós, manual da gargalhada em Português, caldeirão da piada que arrasta, tsunami a encobrir cada incerteza. A gargalhada absurda a embalar o berço do nada, ao afogar um ambiente inteiro em sua própria temporalidade. Invade, desabrocha, contagia e sai com esses pezinhos descalços. […] Vai com cuidado e volta logo para mim.
Replique