Opereta a Seu Alfredo Diviaggi ou o Despertar do Aquífero Guarani

Seu Alfredo sempre dizia que escrever é: “a grafia do ser, enfiada goela abaixo da vida”. Arquitetava cada parágrafo da sua profissão com ousadia e uma caótica organização. Gostava, e, principalmente, era pago, para escrever em revistas e jornais, material suficiente para a produção de um livro a cada seis meses.

          Cada revista visava um público alvo, com expectativas distintas; para a Gostosa Adolescência iniciava mais uma coluna, com seriedade metafórica: “Fui mãe solteira aos 16, logo que deixei à cocaína.” Para o Diário de Ornitologia São-Carlense, descrevia suas observações com perspicácia: “Era uma Asa-Branca; a asa não era de todo branca, aliás, apenas havia uma pequena linha de brancura que esvoaçava entre um bater de asas e outro: naquele gesto imemorial do bater de asas de um pássaro que passa.”

          Não foi fácil para Seu Alfredo atingir à posição, almejada por muitos, de ser colunista de revistas tão prestigiadas: No Compêndio de Filosofia Prosaica, onde os leitores eram agraciados com um artigo seu todo Sábado, podíamos ler numa quinta, com a sutileza que lhe é própria: “Todo cão é um arco-íris encarnado, sinal e túnel contínuo dos mortais com os deuses, um lago de esperança no mar do sofrimento.”

          Aos domingos, dia de putaria raciocinada, de devassidão programada e de luxúria engaiolada, escrevia na Gazeta Desnuda: “A dádiva da ereção aos 70 anos é um tapa na cara do Diabo, uma dança de merengue nos portais do Paraíso.” Entre uma baforada no seu tabaquinho batizado e um gole generoso de seu fiel escudeiro Martini, Seu Alfredo preparava à coluna da segunda-feira, na mais politizada e engajada das Revistas que depositava suas belas contribuições para a História: a Tecnocracia Sublunar. Pousava suas mãos trêmulas na alvura do papel e gritava: “Armai as barricadas! Os Guetos! Desentoquem os soterrados! Conclamai à Assembleia dos que se foram, Marchai sobre os sonhos alheios, arrebentar os grilhões congressistas, forjar a espada mole da justiça, plantar o canteiro do ideal que não basta. Ouse erguer-se, mover-se no verde. Há uma tarde outonal lá fora, as parreiras estão crescendo, os pardais cantando. Há uma atmosfera que torna à saudade o azul-topázio da união, a conquista da calmaria antiga.”

          E partia fintando os afazeres. Tomando café e sorrindo entre um acesso e outro do labirinto das emoções, esmiuçadas como dias da semana, a emoção fatiada, homeopática, que só os vividos conseguem administrar. Seu Alfredo dissecava-a de manhã, a emoção, sem senti-la naquele momento, só para que à tarde, ao pendurá-la no varal do quintal, escorrendo o vapor destilado a fundir-se com tudo, decidisse qual peça da vestimenta da emoção lhe caía melhor, em seu parque de diversões, seu circo e zoológico de si, armado nesse teatro de arena brasileiro.

          Ganhava duzentos dinheiros para especular, toda quarta-feira, sobre os efeitos, benéficos e malevolentes para a saúde, daquilo que morre. Escrevia para o Jornal Morto, verdadeira autoridade na idealização do conceito do fenômeno atmosférico impassível, que é a morte. Os membros seletos dessa camarilha ousada de cientistas, verdadeiros astronautas do espaço cósmico fúnebre, esses escritores de beira de caixão, resenhavam, para delírio de milhões de leitores curiosos, suas vontades, medos e seus tratados analíticos, com experimentos empíricos detalhados, tudo em relação com a arte funerária: “Meus companheiros lúgubres”, discursava Seu Alfredo, “Celebremos cada letra que alça voo de nossas mãos como uma letra a menos que nos separa de nossa Deusa, esta que nos toca com a infinitude daquilo que não respira.”

          O casebre de Seu Alfredo não comportava mais o tamanho do ofício de seu morador célebre, o casebre tremia e Seu Alfredo sabia que sua prensa estava a pleno vapor, prensando os timbres dissonantes de seu pandeiro interno, da sua escola de samba do peito. Sua foice a golpear as matas desconhecidas, dessa floresta em que se era paraquedista da Segunda Guerra, em plena linha de fogo.

          Seu Alfredo tinha uma relação bipolar, ambidestra, parcial e incognoscível com seu próprio passado. Ora pensava ter sido um militar insubordinado, que gostava de Mamãe Eu Não Queria, mas logo isso explodia no ar das suas lembranças, dando lugar às travessuras e às maldades de sua infância efêmera de personagem qualquer de uma época passageira. E então lembrava-se de seu primeiro cão Bobby e de todas as afrontas e mordidas que um causou ao outro.

          Seu Alfredo adorava seu neto. Todo dia ao amanhecer, contava sobre como os Maias alcançaram à Lua, sendo o Rei Pacau o comandante das naves, rugindo como boiada indômita no espaço, lá em cima que é preto de noite e azul-calcinha de dia. E explicava que o Sol revezava com a Lua a prova do quatro por cem, esses atletas olímpicos do céu. E que as abelhas roubam o doce das plantas, tudo porquê a Rainha das abelhas é ditadora colombiana da natureza que é democrática apenas quando lhe apraz.

          Era verdadeiro modelo em 3D para os mais novos. Mas não escrevia tudo o que sabia. “Há coisas que nenhuma revista deve pôr suas mãos manchadas de humanidade. Coisas que só o poeta coletou das frutas em seus pés, coisas irreveláveis que nem a morte, que é uma grande amiga, abrirá a caixa de pandora guardada no cofre do rabisco.

          E contava a seu neto como os Babilônicos, através dos Gregos, Latinos, Portugueses e Indígenas, invadiram o Brasil. Babilônicos futuristas. E emprestava sua única caneta mágica, abençoada por milhões de xamãs, incluindo seu próprio pai, Teodorico IV, para seu neto, que já dedilhava alguns acordes do despencar do momento, como folha de amoreira.

          E seu amigo nas letras, Quincas Borba, a lhe ditar a passagem das estações, a harmonia dos carros alegóricos, a dança desesperada do passista de Barbacena.

          E para a Ufologia Terráquea relatava: “Fui levado a bordo da nave de vidro de água dos forasteiros no dia 22 de Dezembro. Até o Natal fui submetido a cócegas e estudos psicanalíticos. Estava de volta nas festividades. Havia uma incisão pequena no meu pescoço, eu gostava daquilo como o boi gosta de um bom gramado orvalhado.”

          Claro que sabia o gosto de seu público leitor e ajustava o seu calibre ilusório, a força de sua caneta desvairada que movia o imenso público leitor como um Navio de Cruzeiro move seus passageiros.

          Nas sextas-feiras, retirava o dia para responder atenciosamente a todas às perguntas que seus ávidos leitores lhe enviavam. Do Jornal Morto, por exemplo, chegava uma carta toda decorada, que ele sabia ser de uma criança: “Seu Alfredo, é melhor Eau de Cologne, Toilette ou Parfum para o momento fatídico do encontro secreto com a Morte?” Ao que aquele monumento da Ciência Mística nacional prontamente respondia: “É fundamental uma boa fixação, projeção e aroma. Daí o último da série ser o mais apropriado num final de tarde, no ocaso da luz, na sombra das ilusões.” “PS. Procure harmonizar notas de almíscar – condutor selvagem – cavalo inóspito a cruzar à noite escura.”

          A uma leitora do Compêndio de Filosofia Prosaica que lhe enviara: “Seu Alfredo, qual a melhor posição para se tomar um bom banho de Chuva?” respondeu no ato, curto e grosso: “Saudações Exotéricas,” (todos os membros Filósofos Prosaicos tratavam-se assim) “Aquela que facilita à reprodução.”

          A família Diviaggi, a linhagem que forjou tal peculiaridade de humores encarnado num corpo em contínua e imparável deterioração, conhecido como Seu Alfredo, era uma família tradicional de viajantes físicos e psicológicos. Seu pai era psicológico. Sua mãe física. Daí ser Seu Alfredo um verdadeiro Diviaggi. Adorava recordar às palavras da mãe: “É melhor ser 5 do que 3. Por isso estamos aqui hoje, Filho.” Tirava uma centena de conclusões desse raro exemplo de coleção de conchinhas das costas de mares remotos.

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