Chora, minha retroescavadeira em obras

O escritor esforçava-se para arrancar sentidos cruciais de uma mera folha em branco. Farfalhavam as quaresmeiras entoando cantigas de seitas desconhecidas. Relembrava dos indígenas ancestrais que ali viveram, venceram e pereceram. O amor desde cedo fazia sua função básica de entorpecer cada gotícula das sensações humanas. Invadido pelos rituais de outrora, podia comunicar-se com a energia cósmica que possibilita a interpretação dos Seres. Todas as formas de relatos, lendas, narrativas de ascensão e queda de famílias inteiras, epopeias, sagas; relíquias passadas despencavam ante seus olhos, num fluxo incessante rumo à vibração total, a harmonia das esferas, dos quadrados e de todas as outras formas geométricas. Um canto primordial, um coro infantil de igreja, distribuindo o gorjeio da esperança, movia sua caneta incandescente.

Havia uma atmosfera cinzenta-avermelhada a abraçar forte àquele verão. Havia bons motivos para se enfrentar às tempestades dessa grande viagem pelo mar num barquinho corajoso. A Grande Armada da raça rumo aos portos que não chegam.

Afogando-se no delírio da vida, reconhecia seus antepassados, confabulava com estes os planos ousados em relação ao futuro e colocava em marcha o exército de si mesmo. Descrevê-lo era tão prazeroso, corriqueiro e contraditório, aquilo era uma contínua violação dos dois pilares da instituição Exército, em qualquer parte do planeta: a marota hierarquia e a taciturna disciplina.

Gostoso era sentir-se um alimento do Cosmos, temperado de muitas maneiras, com infinitos pais e infinitas mães. Ser o bolo no forno da vida de um gigante qualquer.

De fato, invento histórias. Com sorte, meus protagonistas vão sendo cada vez menos tudo aquilo que chamo usualmente de eu, para serem cada vez mais o que me é alheio. Reconhecendo e fagocitando contigências. Meu círculo hermenêutico quer jogar. Quer adentrar às narrativas de índios, iogues, diplomatas, jornalistas, escritores, xamãs, adivinhos, pedreiros, pequenos proprietários rurais, líderes espirituais, Gandhi, Maomé, Jesus, José.

E a mente espiralando-se com todo o resto, a mente individual sempre alheia ao aparato estatal. Não há estado que rege à liberdade da imaginação, um belo corpo, a obstinada interpretação do DNA dos fatos. Não há partidos nenhum na busca pela autenticidade individual, vocês não veem? Ter um nefasto partido é não ser inteiro.

E a minha geração e seus convidados seletos a desbravar os continentes inexplorados da história, minha geração não vai engolir às ilusões passadas. Vamos erigir nossas ilusões. Nossos ídolos. Nossos Edward Snowden. Nossas barricadas.

Os jogos de tarô, mágicos, RPGs, com seus relevos e montanhas, seus personagens baixos e altos, fortes e fracos, suas histórias de possibilidades, alargadas possibilidades, possibilidades criadas. Engendrar o próprio escopo da criatura, impondo o cânon do novo, alimentando o motor do real com a explosão harmônica ou dissonante da nota musical daquilo que se é, contido num corpo, ecossistema único, mata cheia de espécimes.

Que venham os Homeros brasileiros. Onde estão nossas Virgínias? Ainda bem que temos Clarice, Guimarães, Machado, Hilda Hilst, Suassuna. Mas ainda há muito romance psicológico a ser desvelado, muita vida multicolor a ser incitada, muito conto, poema, ode, comédias e tragédias a dançar nesse salão grande da pátria amada.

A classe bem média, que, para além de acreditar que o estudo e o trabalho são os tijolos e a argamassa do muro de arrimo do país, para além disso, nada, pois o próprio muro encerra à visão. Essa classe média, bebê inocente, que viu e sentiu os poderes devastadores da ignorância e da falta de meios hábeis de seus antepassados, precisa deixar para trás os despojos e a pilhagem da guerra do dia a dia. Precisa desesperadamente deixar de ser média, alcançar à altura que só a vida meditativa e espiritual consagra. Esse meu povo precisa reformar-se de dentro, colher às frutas maduras do bosque da sapiência, desfrutar da fonte calma da paz interior. Não ceder facilmente ao glamour, que os Deuses todos sejam louvados.

As palavras e o silêncio libertam: a letra cura, o silêncio corta, a sílaba cauteriza. A frase é a heroína revolucionária, o parágrafo bem feito é um canhão. O silêncio um poço artesiano. A concordância um alimento básico. Um país ergue-se do texto, esse é o nosso pretexto, a desbancar os malditos preços das coisas, instituindo o valor pessoal. E com o nosso texto nós vamos mover montanhas, simplesmente porque nosso texto é uma retroescavadeira em obras, removendo o entulho de sonhos desgastados, destroçando qualquer sobra da inconsciência da espécie, que insiste em assombrar-nos todas as manhãs, mas, com certeza, é exorcizada ao meio-dia.

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