A adaptação do Mahabharata por Jean-Claude Carrière é de uma beleza exorbitante. No fronte da guerra total por começar há dois seres conversando, aos olhos atentos de dois exércitos, o guerreiro-perfeito Arjuna e o até então semi-deus Krishna. Arjuna pela primeira vez na vida hesita, ao reconhecer e sofrer as perdas de amigos e parentes, dos dois lados da contenda. Krishna tenta reanimar Arjuna:
“- O espírito é maior que os sentidos. Acima do espírito, está a inteligência pura, liberta de todo o pensamento. Acima da inteligência pura está o ser universal. É onde tu vives, onde todos vivemos.
[…]
– Sinto minhas ilusões se desfalecerem, uma a uma – disse-lhe Arjuna. – Mostra-me agora tua forma universal, se é que sou digno de contemplá-la.
Krishna levantou-se e, como havia feito durante sua embaixada a Hastinapura, mostrou-se a seu amigo.
Este levantou a cabeça. De olhos fixos, entre amedrontado e maravilhado, tentou descrever o que via:
– Não posso contar tuas bocas, nem teus olhos, tuas joias, tuas vestes, tuas armas. É uma visão prodigiosa, absoluta, primordial, essa forma que tudo penetra, magnífica e sem fim, como se mil sóis se elevassem no céu. Eu te vejo, vejo todos os mundos num só ponto. Da mesma maneira que os insetos atiram-se a uma chama, assim se precipitam todos os guerreiros em tua boca e tu os tritura entre os dentes. Todos querem destruir-te e tu os devoras. Através do teu corpo, vejo as estrelas, vejo a morte e a vida, vejo o silêncio. Diz-me quem tu és. Estou abalado até o fundo de mim mesmo e tenho medo.
Krishna disse-lhe em voz calma:
– A matéria é mutável, porém eu sou tudo o que dizes e tudo aquilo que pensas. Tudo repousa em mim, como pérolas num fio. Eu sou o perfume da terra e o calor do fogo, sou a aparição e o desaparecimento, sou a serpente cósmica infinita, sou o chefe dos músicos celestes; eu sou a ciência do ser, sou a vida de cada criatura, o jogo dos trapaceiros, sou o esplendor que brilha. Eu sou o tempo que envelheceu. Todos os seres caem na noite e todos são reconduzidos ao dia. Já venci todos esses guerreiros que tu vês à nossa volta. Entretanto, alguns acham que podem matar, e outros, que podem ser mortos; ambos enganam-se. As armas não podem ceifar essa vida que te anima, nem o fogo queimá-la; não pode ser molhada pelas águas ou ressecada pelo vento. Nada temas e levanta-te, pois eu te amo.
A forma universal se desfez aos olhos de Arjuna, que sentia uma força penetrá-lo. Krishna retomou sua aparência doce e sorridente. Disse ainda:
– Podes agora dominar esse espírito misterioso e incompreensível; podes ver o outro lado. Age como deves agir. Quanto a mim, jamais fico inativo. Levanta-te.
Arjuna levantou-se. Retomou seu arco e suas flechas e falou:
– Minha ilusão desvaneceu-se; meu erro está destruído. Graças a ti, reencontrei o conhecimento. Sinto-me firme. Todas as minhas dúvidas se dispersaram. Agirei conforme tua palavra.”
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