Introdução à Dissertação
A dissertação pretende penetrar o texto do apêndice da Ética, juntamente com outras obras de Baruch de Espinosa buscando os argumentos que, juntamente com elementos específicos da ontologia de Deus e do homem desenvolverão o núcleo pelo qual o filósofo aborda a liberdade, o bem e o mal. Perseguiremos o seguinte caminho argumentativo: na primeira seção exporemos as “características” principais, para nosso objetivo, da ontologia de Deus. Como decorrência da ideia de Deus, intuída por Espinosa, defenderemos uma primeira concepção de liberdade.
Na segunda seção, definiremos os termos usados por Espinosa para tratar do homem. Sua importância faz-se necessária para posteriormente tratarmos do preconceito fundamental, ou seja, o preconceito que o nexo do real é inteiramente embasado em uma estrutura finalista. Ao pensar finalisticamente, o homem inverte toda a compreensão da realidade, até mesmo colocando-se como objetivo final da criação. Buscaremos uma certa analogia entre a organização do real de modo finalista e a criação de conceitos transcendentes de bem e mal aplicando-os a algo exterior ao homem, ou seja, o que era um modo de pensar passa a ter realidade ontológica.
A terceira e última seção expõe a segunda concepção de liberdade que iremos sustentar. A estrutura do real espinosana leva o homem, dotado de uma força intelectual inata, a afastar-se de sua primeira natureza e, conhecendo suas limitações como um ser coagido a agir, pode, pelos ditames da Razão, buscar um caminho emancipatório que leva, sim, à liberdade.
Concluiremos então, após percorrermos todo o caminho argumentativo do próprio filósofo que o bem e o mal são fundamentados pela imaginação humana, não tendo realidade ontológica. O homem subverte o nexo do real ao aplicar valores forjados pela sua imaginação a qualquer esfera além de si mesmo. Quanto à liberdade, deixaremos claro que o homem não adquiri-la Toda, mas, dentro dos limites de sua natureza pode, desejando o que já si é, ou seja, negando o que denigre a sua própria natureza, o homem “obedece a si mesmo, e pratica aquilo que sabe ser-lhe primordial na vida.”1 (Baruch de Espinosa, Ética, Parte IV, Prop. LXVI, Escólio)
I
Baruch de Espinosa argumenta em sua Carta 58, em resposta a G. H. Schuller, contra uma possível interpretação errônea de sua concepção de liberdade:
“Yo llamo libre aquella cosa que existe y actúa por necesidad de su sola natureza; coaccionada, en cambio, la que está determinada a existir y a obrar de cierta y determinada manera.”2
(“Eu chamo livre aquela coisa que existe e atua por necessidade somente de sua natureza; coagida, ao contrário, a que está determinada a existir e a agir de certa e determinada maneira”)
Na Ética buscaremos compreender melhor o conceito de determinação necessária, definiremos então, algumas “características” do conceito de Deus na filosofia de Espinosa. A primeira delas é a compreensão espinosana da palavra já presente na obra de Aristóteles, a substância. “A substância é o que é em si e se concebe por si”3. Outras definições introduzidas logo nas primeiras páginas da Ética unem-se para formarem a difícil ideia de Deus intuída por Espinosa. Atributo é dito daquilo que algum “entendimento percebe de uma substância como sendo sua essência”4. Diz-se de “Deus um ser absolutamente infinito, isto é, uma substância constituída por uma infinidade de atributos cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita”5. Conforme a Proposição XV, da Ética I, “Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido”6. Deus então, causa-se a si mesmo, age em si e não fora de si, sendo assim, todas as coisas do real são necessárias e determinadamente forjadas pela Sua infinidade. Vale notar também a identificação entre o termo substância e Deus. O sistema de causas que os infinitos entes formam só pode se sustentar logicamente se houver a Causa primeira, ou seja, algo que eternamente causaria-se a si mesmo e por ser única, consequentemente, toda a realidade. Usamos dois termos não definidos anteriormente: eternidade e o fato de a substância ser única: eterno é a própria existência, ou seja, no sistema metafísico espinosano há uma supressão do caráter temporal. A unicidade da substância se explica do fato dela ser infinita, sendo assim, é absurdo supô-la dividida.
A definição de livre é a mesma, tanto na Carta 58, quanto na Ética I. Ambas desenvolvem que, se a estrutura do real é necessariamente decorrente das modificações do Ser Supremo então nada, senão Ele, pode adquirir o status de livre. Todos os outros entes decorrentes necessariamente da existência de Deus não poderão ser livres, nunca poderão causar-se a si mesmos. Daqui tira-se a primeira concepção de liberdade. ****
II
Após apresentarmos algumas definições contidas na Ética I, passaremos ao exame do preconceito inicial ou o preconceito que a realidade age a partir de uma estrutura finalista. Espinosa identifica que o fundamento para forja-se tal pensamento têm duas premissas (reformuladas mais objetivamente):
(1) o homem somente se supõe livre; no seu estado nativo, esta imerso na ignorância (das causas de seu apetite)
(2) o apetite tem consciência do útil (o homem age em busca do útil, o que somado ao finalismo leva o homem a agir em busca das causas finais)
Devemos, neste ponto, definir os elementos usados nos dois fundamentos que fazem referencia à ontologia do homem. O importante conceito de conatus define posteriormente o de apetite. Conatus é a essência atual da própria coisa, é a potência ou esforço que permite um corpo se manter como um corpo singular. O conatus têm uma expressão mental outra corporal. Apetite é o conatus quando este se expressa corporalmente. Quando de sua expressão mental chama-se vontade. A vontade com consciência denomina-se desejo. Daí prossegue definindo afecção como sendo a ocorrência de algo no corpo. Afeto, a ideia produzida por uma afecção. Ao deliberar o homem está sendo atingido por dois tipos de afetos: Os de alegria e os de tristeza. Os de alegria causam necessariamente um aumento do conatus, o indivíduo aumenta sua ação. Contrariamente, os de tristeza são passivos, levam a uma diminuição da potência de perseverar-se, são embasados na paixão.
O desejo pelo útil é um fato positivo, quer dizer, por sermos homens naturalmente desejamos o útil, e vice-versa. A ignorância do homem no estado inicial, somado com um desejo que lhe é próprio tem por consequência: O homem julga-se livre e a partir daí julga que tudo na natureza faz papel de meio para ele conseguir seu intento. O Sol lhe é útil para iluminar e fornecer calor. A macieira é útil para lhe fornecer a maçã. E assim por diante, desconhecendo a determinação necessária da realidade, conforme o primeiro fundamento, o homem considera até mesmo que Deus criou a realidade em busca de algum fim. Como seria possível Deus querer algo se Ele tudo têm?
A estrutura de uma realidade finalista se espalha de tal modo nas mentes dos homens até se tornar uma ampla doutrina supersticiosa. A superstição é um afeto triste, ela “é a paixão mais eficiente”7. Denigre a realidade de tal forma que produz inversões imensas, o Apêndice cita três: a causa torna-se efeito, o que é posterior torna-se anterior e vice-versa, o perfeito torna-se imperfeito.
Fizemos a exposição anterior, uma breve exposição da ontologia do homem, em Espinosa, exatamente para conseguirmos interpretar as consequências dos fundamentos, o que corroborará para a compreensão do movimento que dá realidade ontológica ao bem e ao mal. O movimento de atribuição do caráter transcendente, mutatis mutandis, é o mesmo tanto nas questões de bem e mal quanto na estruturação de uma realidade finalista.
Podemos agora demonstrar a crítica desenvolvida no Apêndice e na Ética IV ao Bem e Mal como instâncias transcendentais:
“Quanto ao bom e ao mau, não indicam também nada de positivo nas coisas, pelo menos se consideradas em si mesmas, e não são senão modos de pensar ou noções que formamos porque comparamos as coisas entre si. Uma só coisa pode ser ao mesmo tempo boa e má, e também indiferente. Por exemplo, a música é boa para o melancólico, má para o aflito, para o surdo não é boa nem má.”8
A “aplicação”, pelo homem, de algo estritamente referente ao seu âmbito para algo fora do seu ser e logo após para todo o real, leva-o a deformar o status das coisas, desqualificando-as e imaginando, conforme seu engenho, uma realidade extra-humana aos conceitos de bem e mal. O erro é julgar que na essência de cada ente diferente do homem há algum valor inerente de bem e mal. As expressões linguísticas de bem e mal devem ser conservadas, vide Ética IV, pois indicam algo que é positivo ao homem, ou seja, se algo realmente é útil a ele, diz-se que aquilo é bom. Se o contrário é observado, diz-se que é mau. Porém não pode haver, em Espinosa, alguma ordem da realidade que separe ontologicamente os entes bons e os maus. Eles serão apenas formas da imaginação humana obrar, um modo de pensar que nunca deve exceder em aplicação o âmbito do homem.
III
Das duas últimas partes o que deve ter ficado claro é que Espinosa definiu uma clara linha que separa as atribuições do homem das de fora dele, das que o transcende de alguma forma. O erro ocorre toda vez que o homem, confundindo as esferas de atribuições, quiser imputar a sua ordem à realidade exterior a ele. Demonstraremos, nessa terceira seção, a concepção de liberdade desenvolvida na Ética IV, após Espinosa ter discorrido longamente sobre as paixões humanas. Claro está, então, que o ramo de atribuição da liberdade, em contraposição da definida na Ética I, será deslocado da ontologia de Deus para a do homem. O recorte das características humanas, demonstrado na segunda seção, juntamente com o discurso de demolição da superstição levado a cabo no Apêndice leva-nos a seguinte pergunta: Se a superstição denigre a natureza de tal forma a tirar o homem do seu curso natural, qual o estado do homem não-supersticioso, que escapa do longo manto da superstição e das paixões tristes?
No Tratado da Reforma da Inteligência Espinosa, após uma discussão sobre o melhor modo de percepção que “é aquele que nos dá a essência das coisas”9 compara “o que sucede na busca do conhecimento com o que se passa com a fabricação de objetos”10. Diferentemente de Descartes, na doutrina metafísica de Espinosa, não há idéias inatas e sim uma força inata que forja instrumentos, capacitando-nos ao conhecimento. O famoso exemplo do martelo exemplifica como a cadeia de conhecimento vai sendo criada por nosso mecanismo intelectual inato:
“Assim, para forjar o ferro é necessário um martelo e, para ter um martelo, é necessário fabricá-lo, para o que são necessários outro martelo e outros instrumentos… e assim ao infinito”11
O que Espinosa espera mostrar daí? Que em algum momento foi usado qualquer instrumento natural para um dia podermos ter criado o martelo e dele forjar adequadamente o ferro. É claro que o instrumento natural faz menção a inteligência pura ou seja à razão, que não possui ideias confusas. Presume-se que a discussão sobre o melhor modo de percepção, levado a cabo no Tratado da Reforma da Inteligência, é de conhecimento do leitor. O cenário de uma segunda concepção de liberdade está criado. A metáfora focaliza o que Espinosa espera que entendamos: O homem detém uma força inata de forjar uma ideia verdadeira e segue criando toda a cadeia de conhecimentos, até o “cume da sabedoria”12. O cume da sabedoria diz respeito à liberdade, ou seja, o homem Livre vive “somente pelo ditame da Razão, não se dirigi pelo temor da morte, mas deseja diretamente o que é bom, isto é, deseja agir, viver, conservar o seu próprio ser segundo o princípio da utilidade própria”13. Então, à luz dos problemas apresentados na segunda secção da dissertação, o homem tem que ir se afastando de sua primeira natureza (ignorância absoluta) e isso é um processo inerente à sua natureza, dada sua força natural de construir o conhecimento. Os pré-conceitos e, por conseguinte, a própria superstição são um estágio que deve ser ultrapassado pelo homem.
O que nasce diretamente do conhecimento, ou seja, uma idéia forjada pelo próprio intelecto é um afeto alegre, contrapondo-se às paixões e imaginações que são tristes. Ao afirmar o controle das paixões que a razão e o conhecimento realizam, Espinosa conclui que a liberdade, tal qual definida na Ética IV, leva diretamente a afetos alegres e consequentemente ao aumento gradual do conatus. Negando as paixões, que lhe afasta do reto caminho, o homem realiza seu intento necessário, determinado e sobretudo consciente de uma grande ou máxima potência de viver.
Conclusão
Demonstramos, de acordo com o Deus pensado por Espinosa, uma primeira via para a liberdade atribuída somente a Ele, ou seja, somente a substância detentora de infinitos atributos e que causa a si mesma é livre. Fechamos com isso a primeira seção de argumentação. Porém, deixamos uma porta aberta para buscarmos na quarta parte da Ética e no Tratado da Reforma do Inteligência os elementos que elevarão o homem ao máximo de sua potência e conhecimento. O auge do conhecimento só pode relacionar-se com a idéia produtora de todas as outras ideias, Deus. O homem livre então, encontra-se ou funda-se, pelo intelecto, com todo o real; em suma, o homem livre entende racionalmente o plano estabelecido por Deus para ele e para todas as coisas e, com isso, goza de uma felicidade grandiosa, única. Ao compreender seu papel no real o homem identifica-se com toda a Natureza, e isso é o auge da existência humana.
Também expomos como os valores de bem e mal, assim como o finalismo, se inerentes nas essências das coisas, só levam o homem a subverter a realidade, desqualificando os entes. A aplicação de uma ordem esquadrinhada pelo bem e o mal só pode afastar o homem do conhecimento claro e distinto sobre os entes e como eles são necessários e determinadamente criados pela substância absoluta. Atrapalham o curso natural do homem, o conhecimento claro que tudo faz parte da substância. Todos são partes que manifestam o Todo de Deus, devemos afastar o que nos oculta isso. Ascenderemos a nossa natureza se livrarmo-nos das paixões tristes, e esta é a plena felicidade.
Replique