A origem do traço em Memórias de Cego de Jacques Derrida

«A metafísica apagou em si mesma a cena fabulosa que a produziu e que permanece, no entanto, ativa, turbulenta, inscrita com tinta branca, desenho invisível e oculto no palimpsesto”[1]»

  1. Considerações Gerais sobre Memórias de Cego (Mémoires d´Aveugle) de Jacques Derrida

          O livro Memórias de Cego apresenta de forma sofisticada, sutil e, ao mesmo tempo complexa, boa parte do trabalho de Jacques Derrida ao longo de quatro décadas em torno de indagações como: Quem ou o que escreve, traça? Quem pergunta por quem ou o que escreve? Qual a forma de uma resposta adequada a essas perguntas? Qual o meio que se revelará a resposta? Isso leva o trabalho de Derrida aos recônditos das questões sobre interpretação e textualidade e, assim, até a semiótica em geral, que muitas vezes aponta na direção de uma certa espontaneidade textual, que é capturada e tematizada em Derrida sob o “conceito” de différance.

          O insight que permeia a obra é aquele que diz que para ver ou escrever não é necessário, de fato, o sentido da visão.  Derrida se propõe a repensar o âmbito do visual. No desenho ou no discurso há autor um cego, que produz algo sem “acessar” um horizonte visual para depois, dotado das imagens captadas, tracejar. Em vez de advogar por uma teoria monocular da visão, Derrida há situa em um âmbito complexo e ambíguo. Tudo se passa na entre-vista, ora um momento de revelação e luzes de soslaio, ora um momento de cegueira e escuridão total.

          Para melhor compreendermos uma parte específica do livro, tarefa que levaremos a cabo no texto que se segue, passemos antes a elucidação de uma tese, ou melhor, hipótese fundamental para a estrutura de Memórias de Cego, que Derrida cuida de tratar tanto na introdução quanto na conclusão do livro, qual seja, a hipótese ab-ocular. Derrida nos ensina a etimologia da palavra latina que legará o aveugle (cego, cegueira) ao Francês: ab = fora de, com origem em; e oculis = olho. Pela dupla semântica de “ab” geram-se duas hipóteses: ou algo de fato está fora, separado do olho, ou algo emana e se origina no próprio olho, de dentro do olho.

          Memórias de Cego é um livro que reinterpreta o tema da cegueira, da cegueira como tema clássico que perpassa a história, por Narciso, Tirésias, Édipo, Homero, etc. Porém a cegueira não é o único tema do livro. Este também busca dizer dos retratos, dos autorretratos, do desenho e da memória.

          Derrida joga com as noções de traço (trait) e retraço (retrait = retirer, ôter, enlever, se rétracter), enquanto o primeiro faz surgir a memória formadora de uma identidade, este a torna velada, a esconde, a universaliza. Desenhar é um ato de privacidade, ao mesmo tempo de velamento, ação que engendra uma singularidade. Decorre disso a cegueira, a sombra inerente a qualquer obra. Pois além de velar, esconder, preservar uma singularidade a obra revela, confessa algo de seu desenhador, revela seu olhar turvo, na busca de se ver e se autografar, seu olhar permanece enublado. A obra traça e retraça, aparece na luz e se esconde na escuridão revelando com isso os limites e possibilidades dos seres humanos. Há como que uma cisão entre aparecimento e velamento que interrompe um ao outro de forma perpétua.

          Derrida nos alerta que o traço institui uma singularidade, uma manha e uma auto-biografia e, ao mesmo tempo, engendra uma criação ficcional aleatória; coerência interna concomitante a uma divergência transgressiva. Isso se dá pois aos homens é vetado o acesso à totalidade da natureza; a origem da cultura, ao contrário do que pensava Heidegger, não fornece um acesso privilegiado ao Ser. Em Derrida, a origem como modelo total não é acessível, e isso marca a sinete todas as obras futuras. Releva-se o aspecto de palimpsesto do texto e do quadro, que se dá apagando-se, escondendo-se, já que não representa qualquer modelo canônico. Daí o ceticismo que aparece com em Memórias de Cego exatamente anterior à exposição da hipótese ab-ocular.

          A hipótese ab-ocular dá a ver outras duas hipóteses. Em primeiro lugar: o desenho é cego. O desenho sempre reflete uma busca de constituição de um “si mesmo”, astúcia de uma manha, por isso sempre perfaz um monólogo. Derrida vê aí, a miopia e a cegueira de Narciso, aquele que só vê a si mesmo, e essa miopia e cegueira estaria contida em todos os quadros e textos. Ao buscar por um si mesmo que se auto-grafa nas obras, há uma revelação de uma natureza paradoxal e ficcional de qualquer identidade, construída através de qualquer meio. Em segundo lugar, consequência direta da primeira: ao desenhar o cego, ou a cegueira, o artista desenha cego. Pois engajar-se no desenho é expor a sua origem multifacetada e, no limite, inefável. O desenho é filho de um momento de desvelamento e busca por autoria de um lado, porém é, também, filho de um ocultamento originário, de outro.

          O autorretrato se dá em um duplo movimento, na verdade múltiplo e multifacetado, que o idioma Inglês dá conta tão bem na polissemia de uma palavra: to draw, to draw, ou seja, o primeiro no sentido de desenhar, traçar, o segundo no sentido de tirar, retrait em Francês. No movimento de traçar um desenho, ou um texto, o autor apenas captura um traço, um ponto de vista entre infinitos outros, o que é um indicador da cegueira, tanto da mão que trabalha quanto de qualquer objeto representado. Derrida assegura o direito das coisas de se manterem em segredo, longe da mão que sempre se precipita na apreensão. O tom de fechamento de Memórias de Cego é de lamentação, de descoberta da perda, da falta e da cegueira originária. Entretanto, da mesma maneira que a mão segue seu caminho cego, o olho também se lançará; destino cego do olho que vê a cegueira, eternamente constrangido a repensar sua única função.

  1. Análise das páginas 72 à 96 de Memórias de Cego

          Buscaremos considerar, no excerto que nos coube, como Jacques Derrida pensa a questão da origem do traço, questão detalhada com mais pormenores na conclusão que se seguirá.

          A primeira figura da página 72, As Ruínas do Coliseu de Roma, remete ao cerne da questão proposta. Derrida pensa que todo objeto cultural, quer seja um quadro, um texto ou uma escultura, carrega um erro, uma falta em si. Esta falta arruína a obra, todas as obras. Esta ruína inerente a qualquer obra adia para sempre a representação, trai as pretensões do artista. Entretanto é daí que nasce o desejo pela obra. Através da assombração de uma obra incompleta, imperfeita, o artista se lança no obrar. A falta marca qualquer obra. Esta é filha de um sopro de semideus, enclausurado em suas contingências terrenas. Na origem de uma obra, há uma sombra muda, que toma voz no rastro traçado pelo artista. Por que, então, «no começo há a ruína»[2]? Derrida pensa a subjetividade como sendo uma relação tácita de um próprio e um alheio. Nos recônditos do que é mais próprio, há marcas indeléveis de outro, que interrompe e adia qualquer individualidade. Dessa impropriedade consigo mesmo, nasce o dever para com o outro, que constitui o ser humano. Daí que toda a obra de arte tenha marcas de outra mão, para além da mão que a tece. É desse outro no próprio que brota a peculiaridade da obra.

          O traço que gera a obra é guiado por mais de uma mão, mais de uma perspectiva, mais de uma língua, mais de uma individualidade. Nessa multiplicidade de vozes e rastros nasce a cultura, o conjunto das obras humanas. Olhares vários que se somam e se constrangem mutuamente, indecisos sobre como tornar memoráveis suas vozes e olhares efêmeros.

          É imperioso que façamos uma breve incursão através do mito de Narciso, através da letra de Ovídio nas Metamorfoses, pois Derrida faz uso da sua significação na página 74, e permeia várias de suas obra. Podemos interpretar que a personagem de Eco simboliza a antípoda de Narciso. Enquanto aquela é atenta em olhar e amar o outro, este olha apenas e incessantemente para si. Podemos especular que o pensamento de Derrida como que busca fundir as simbologias de Eco e Narciso.  Ao olhar para si vê-se o outro e no outro se encontra o eu. Porém, as instâncias do si mesmo e do outro se juntam e dissociam perpetuamente, não permitindo a ninguém a representação de Narciso ou de Eco isoladamente. Narciso se entrega passionalmente no curvar-se perante si mesmo, reflete sobre si e é refletido. Almeja tanto seu reflexo, pensamento que não prevê nem possibilita alteridades, que padece inelutavelmente. Entretanto, toda reflexão de si guarda uma sombra. A sombra remete ao não revelado, ao que se encontra segredado. A sombra, muitas vezes, apavora pelo seu perpétuo adiamento. A sombra é do âmbito do impróprio, do alheio, que interrompe a reflexão narcísica. Na sombra, no que não se pode ver, estão em potência tudo o que é alheio a um solipsismo impossível e ingênuo e, por isso, na sombra está contida a marca indelével de uma alteridade sempre introjetada nas pretensões balbuciadas de qualquer eu.

          A impossibilidade de se viver um narcisismo pleno, remete para a meta-ética de Derrida, que considera a subjetividade primeiramente e fundamentalmente habitada pela estranheza total, pela sombra, do outro. Quando cedemos ao narcótico que nos fornece lampejos de um orgulho obstinado e obsessivo por um suposto eu, recuamos assombrados ao reconhecer as marcas, os traços de um alienígena em nosso foro mais íntimo. Derrida não acusa o fim do narcísico. Nesse mito recontado, desconstruído, Derrida imagina um Narciso que cede ao amor de Eco, que aceita aquela que só se projeta no sentido da alteridade, porém que sempre volta ao poço de onde se vê refletido. A impossibilidade de um narcisismo pleno, em Derrida, milita por um criticismo que nunca finda, contra a idealização do reflexo apaixonante e, por conseguinte, contra a suspensão do pensar e a favor do abrigar o outro. Pela visão de si, na reflexão de si mesmo, Narciso, o destinado ao conhecimento apenas de si, perece. Ao crer-se poder bastar-se por si mesmo, Narciso não dá espaço a nenhuma alteridade, constituindo, então, para Derrida, um ícone impossível, que nunca chega.

          Na página 74, Derrida em poucas linhas dá a ler um dos principais insights de sua filosofia: «Como amar outra coisa que não a possibilidade da ruína? Que a totalidade impossível?»[3] A totalização plena não chega nunca: do sujeito, da obra, do futuro, do passado, do ideal. Em qualquer escopo de apreensão, sempre muito se esvai por entre os dedos. O que se pode tematizar como que obedece ao princípio da incerteza. A experiência mesma, no seu fluir não necessário, apresenta-se interrompida, capturável apenas em partes, em suas bilhões de variáveis. Derrida se opõe a um logocentrismo que vê no significado uma totalidade passível de ser abarcada pelo obrar humano. O significante da linguagem sempre deixa escapar parcelas do significado por entre os seus dedos. Essa dualidade de significante e significado desfaz-se, na origem do traço, pois qualquer uma das dicotomias clássicas da metafísica sequer podem se referir ao momento enclausurado e eclipsado da origem.  Daí o modelo ótico ser apenas mais um modelo, nunca o superior, nem o que atinge maior objetividade.

          O conjunto de obras humanas relativiza o canônico, qualquer modelo. Porém, cada contribuição particular deve ser salvaguardada com toda a força. Há um segredo incontornável na origem de qualquer obra. Esse segredo mudo, cego, surdo e insensível ultrapassa a apreensão sensível e intelectual humano, aponta para a limitação inerente ao ser humano, que, por isso, se sente ultrajado, amedrontado. Daí a manha humana, que se lança em cunhar artefatos técnicos com vistas de ludibriar o segredo contido na origem. Derrida analisa os quadros de Chardin, nas páginas 78 e 79, sob o prisma dos óculos que tentam, sempre em vão, suplementar a falta originária a qual os humanos estão fadados. Por se auto-mostrar munido de tantos paliativos, o homem revela, de fato, sua carência original.

          Nos desenhos que representam os olhos fechados, que permeiam as páginas 82-85, Derrida vê o protótipo de todo ser humano. Os olhos fechados como que remetem para a insuficiência do olhar, que por mais que busque apreender o que presencia, sempre é remetido para um horizonte da não-visão, da obscuridade, do passado originário inacessível que está contido em cada átimo do presente.

          Não é possível a intuição direta do originário ao homem. O autorretrato sempre representa um ponto de vista e apenas um, atesta a insuficiência da obra de tornar presente o que pretensamente é representado. Por isso o voltar-se, na discussão que se segue de Memórias de Cego, para a máscara, que mascara, enlutando qualquer autorretrato. Aí se inscreve o mito de Perseu e de sua manha, que enfrenta e mata Medusa mediante um olhar enviesado que expõe a vulnerabilidade que a fixidez de um olhar ou de uma ideia engendra. Fixidez do olhar que metaforiza qualquer crença dogmática assumida sem reflexão. Assim como Ulisses que fura o olha de Polifemo, singulariza sua biografia através de uma manha, um ato e se recolhe no esquecimento, quando se auto-declara: “Ninguém”. Ao mesmo tempo inscreve seu ato e apaga-o, ao tentar se nadificar. Derrida vê aí a lógica implícita em toda obra humana e, especificamente, dos autorretratos. Ao mesmo tempo em que algo se revela, se esconde, se despede, diz adeus. Assim como a música, em sua transitoriedade plena, fugacidade memorável que anuncia um rastro de cometa fugaz, no seu vir-a-ser.

  1. Conclusão

          Derrida é visto e lido por Richard Rorty, em Contingência, Ironia e Solidariedade como um ironista. Ironista é alguém que tem no centro do seu vocabulário a noção de contingência. Aos olhos de Rorty, Derrida privatiza os grandes temas da metafísica, sendo capaz, com isso, de uma enxertia altamente original. Segundo o filósofo estadunidense, Derrida não joga o jogo de outro vocabulário pré-instituído, busca fugir de ser estigmatizado como mais uma nota de rodapé de Platão.

          O cenário em que se move Derrida, então, seria o de ter alcançado autenticidade individual. Autenticidade, pensa Rorty, que apreendeu com Heidegger, porém, Derrida é cauteloso ao ver a si mesmo como portador da voz do Ser ou de uma grande época da história. Rorty advoga pela tese que a desconstrução não é uma metodologia descoberta pelas novas pesquisas em filosofia. «A desconstrução é entendida como uma recontextualização que re-inverte hierarquias entre conceitos como: forma-matéria, presença-ausência, um-vários, mestre-escravo, Francês-Americano, Fido-“Fido”.[4]»

          O que faz de Derrida um autor diferente então, nesse processo? Porque, de alguma forma, Derrida atinge um tipo de texto que abala qualquer critério estético anterior que o possa enquadrar em certo tipo de filosofia ou literatura. Algo que só acontece às grandes obras da humanidade. Rorty vê no capítulo “Envois” de Cartão-Postal o exemplo máximo dessa originalidade que nunca antes apareceu na história. Em vez de fornecer respostas às questões metafísicas que pairam sob os seus antepassados, enclausurando-os, Derrida prefere oferecer vislumbres que redescrevem a nossa compreensão de mundo sem fornecer qualquer resposta, tanto para conseguir escapar do jogo da metafísica quanto pela extensão diminuta do texto que comporta um Cartão-Postal.

          Deixando de lado as interpretações de Rorty, voltemo-nos por um instante para a obra Gramatologia de Derrida. Em um primeiro momento, o autor retorna aos primórdios da Linguística para identificar em Rousseau e Saussure a primazia da língua fonética sobre a língua escrita, ou escritura. Esta seria, para Rousseau: «A escritura não é senão a representação da fala; é esquisito preocupar-se mais com a determinação da imagem que do objeto[5]». Com isso previu-se que a escritura seria uma aberração que, de fato, atrapalhava a língua falada. A Linguística de Saussure, na esteira de Rousseau, busca enclausurar em um domínio o que seria objeto da disciplina e o que não seria. Dessa limitação de domínios, a escritura estaria apartada.

          A crítica de Derrida à Linguística ressalta, também, a importância dessa disciplina, pois atinge os pilares das correntes metafísicas do racionalismo e do empirismo. Negando um dogma fundamental do racionalismo, Saussure negou que o “significado” fosse dado por nomes fixados por essências. Contra os empiristas ele negou que o “significado” fosse originado por nomes dados segundo a experiência sensível. O significado seria função de sua posição em uma subjacente estrutura da linguagem. Tal estrutura não seria fixa. Cada objeto linguístico não seria definido a partir de elementos que lhe seriam inerentes e, sim, em uma relação negativa a outros objetos linguísticos em um sistema. A linguagem seria, então, um sistema de signos. Estes, por sua vez, seriam combinações de sons e conceitos, relacionados por um sistema de convenções. O caráter convencional da relação interna entre os componentes do signo faria dele um elemento completamente arbitrário. Sendo assim, o signo não teria essência e não apontaria para nenhuma finalidade, estaria longe de poder ser o aval para a idéia platônica de conceitos universais, absolutos, dados pelas formas puras.

          O problema fundamental é que a história da metafísica considerou a escrita natural, a que por direito porta a voz do Ser, do âmbito da voz e do sopro, apenas. Enquanto isso a escritura seria representativa, signo do signo fonológico, decaída, portadora de morte. A história da metafísica, de Platão ao racionalismo do Séc. XVII pensou o significante como uma totalidade, que seria passível de acesso e/ou “leitura” pelos homens, como um livro, um grande livro da natureza. Desse logocentrismo teológico sempre foi irmanada a linguagem fonética como portadora da presença. Pelo contrário, a escritura foi relegada a um papel subserviente de mera representação que interrompe o devir do ser e da presença, da substancialidade. Derrida pretende pensar a escritura em um outro âmbito: «Se “escritura” significa inscrição e primeiramente instituição durável de um signo (e é este o único núcleo irredutível do conceito de escritura), a escritura em geral abrange todo o campo dos signos linguísticos.[6]»

          A instituição de um novo signo linguístico arbitrário confronta com as noções de physis e nomos, abalando-as. Com isso, cai por terra a tentativa saussuriana de advogar pela primazia da linguagem fonética, como símbolo natural, sobre a escritura, representação da representação, signo do signo. Não é apenas o texto de Saussure que não dá conta de pensar a enxertia de novos signos operalizada pela escritura. As próprias noções de epistéme e de metafísica logocêntrica não relevaram o poder da escritura que, como propõe Derrida, não é signo exterior à fala. A escritura torna-se um «rastro instituído[7]» .

          Ao fazer menção a um arquirrastro ou rastro originário, Derrida remete-nos para um momento tal que escapa e é anterior a todo o escopo que distingui sensível e inteligível, sendo, por isso, condição de possibilidade destes. Por isso, qualquer conceito assente nas dualidades e estruturas da linguagem não pode nunca definir o traço originário, que permanece segredado. Como é inalcançável o rastro originário, qualquer rastro “presente” aponta para seu passado inefável. Qualquer grafema leva contido em seu cerne o mistério da sua origem, que o torna, no presente, um sinal de um passado imemorial. Na origem, que institui o rastro originário, não há possibilidade de decifrar um sujeito, nem mesmo as coisas e os referentes.

          Estamos dotados, nesse ponto, do aparato conceitual para entendermos porque a necessidade de Derrida em criticar a historiografia que vê na língua fonética a origem de toda língua. Pois na origem, não ocorre só a fala, nem só a escritura, são ambos porém antes do verbo ser, e provavelmente há mais que essa díade, porém, não podemos perscrutar, na origem. A distinção entre fala e escritura não se põe, na origem, porque nenhuma oposição se dá. A origem é anterior as sedimentações da linguagem. O logocentrismo, tendo pretensões de abarcar todas as potencialidades da origem, com uma estrutura que forneceu à fala uma primazia ante a escritura, se aliou com a possibilidade de totalização plena da metafísica como sistema. O logocentrismo, nesse sentido, é teológico.

          Da impossibilidade de diagnosticar essa presença-ausência do rastro, a metafísica ocidental cunhou noções com vistas de totalização, como o monismo, as teorias da imortalidade da alma, etc. É contra o logos totalizador da filosofia ocidental, que desemboca na linguagem fonética como captação total do que é presente, em detrimento da escritura, que se volta o texto derridiano. Essa lógica impossibilita a diferença, o outro, entrava a filosofia a um pretenso vocabulário final total. A favor da alteridade que institui outros traços, que preservam o laço indelével com a origem, ao mesmo tempo em que anunciam a plena novidade.

          Da potencialidade inescrutável da natureza de se manter outra aos homens, se manter fechada, segredada, é que brotará o respeito absoluto pelo outro não conhecido que, como uma sombra, acompanha todos os rastros, todas as singularidades. De fato, é exatamente pela falta de um referencial modelar último que forneça um vocabulário e, por conseguinte, ações canônicas, é que todos os componentes da cultura devem estar permanentemente em reconstrução. E para que esta ocorra, sabemos, é preciso um solo muitas vezes ocupado, ou seja, é necessária a desconstrução dos vocabulários que já fizeram história.

          Derrida nos alerta que o vocabulário pretensamente superior da filosofia, que supostamente atinge as essências e os referentes últimos, está plenamente embasado em uma ficção. O discurso filosófico mantém com a literatura, as artes, as ciências matemática, o mesmo patamar hierárquico, pois não consegue atingir a compreensão total de uma gama de concepções tais como: significado, realidade, alma, essência, etc. O discurso filosófico se mantém maculado pelas vicissitudes implícitas em qualquer linguagem, pois o acesso ao seu ponto originário é-nos totalmente vetado. É tão impossível quanto pensar em um ser humano que assiste ao evento do Big Bang para descrevê-lo.

          Derrida posiciona os pilares de sua filosofia em uma aporia incontornável. Ao mesmo tempo que assume um “isto é”, assume, também um “isto não é”, em outras palavras, qualquer signo, fala, texto, rastro presente mantém em si mesmo sinais que provam sua pertença a uma passado que anula sua presença, a torna ausente. Dessa ausência faz-se a presença e vice-versa. A enunciação de uma mera palavra é sempre incompleta, carece de significados ou vários outros se sobrepõem. O discurso, conforme vai se construindo sobre essa dissimetria que torna ausente ou sobre-determina o significado de cada palavra, pode abandonar os princípios lógicos com os quais ele se inicia e se auto-desconstruir. É desse movimento que os conceitos da metafísica tornam-se “meros” conceitos que não podem fundar qualquer tipo de apreensão unívoca sobre o mundo. Em vez dos pensamentos espelharem idealidades fundamentais, Derrida reafirma o caráter de constructo do pensar que é falível pela própria contingência dos seres humanos. Daí surge a diferença entre os diversos vocabulários, nunca apaziguada, diferença que foi pensada por Derrida primeiramente como respeito absoluto pela alteridade contida em outrem.

          A desconstrução, tal como entendida por Derrida, força uma formação ininterrupta e obsessiva de um eu que se vê habitado pela alteridade. Sujeito esse que busca ter claro para si mesmo que a linguagem a qual habita não pode ser totalmente apreendida, portanto é sempre contingente e fundada inteiramente na ficção. A desconstrução pretende ser pragmática porque não se desloca do horizonte da ação no mundo, parasitária que é de qualquer âmbito da cultura. Derrida torna esse último aspecto claro com os artigos que escreveu sobre a situação Europeia, terrorismo, desemprego, etc. A desconstrução é engajada, porém não propõe uma teleologia. Esta seria abarcada e destruída pela “máquina” desconstrutiva.

          A contingência da linguagem, sua incapacidade de atingir um referencial “puro” e seu caráter ficcional delimitam seus limites. É exatamente ao assumir esses limites que o sujeito se vê dotado da força suficiente para manipular o passado o presente e o futuro da língua, em criar outros mundos possíveis através das metáforas e ficções sempre abertas para o novo que o futuro abriga e marcadas a ferro pelo passado que constrange todo ato presente.

          Últimas considerações sobre Memórias de Cego: Vimos que na “estrutura” original do rastro estão contidas marcas indeléveis de algo que escapa, não capturável para a nossa capacidade de conceituar, desenhar ou escrever. O mesmo traço interrompido guia a mão do artista, que nunca vê completamente o objeto da sua arte. Quer seja pela memória que aponta sempre para o passado, ou pela sobre-determinação de múltiplas identidades que assume o objeto que se tenta capturar em uma pintura, sua totalidade sempre escapa à apreensão humana. Como se dissolve a pura identidade ou “essência” referida no quadro, qualquer traço do artista mostra, revela sua inaptidão originária, age como paliativo que busca sempre em vão suplementar as faltas inerentes à incondição do ser humano. Decorre daí que a experiência visual fica escurecida por tantos suplementos usados para “ludibriar” a cegueira original.

          Ao longo do livro nos deparamos com duas hipóteses, que desembocam em uma terceira: (I) todos os artistas figuram o cego, (II) o próprio artista é o cego figurado, e, portanto, (III) todos os desenhos são autorretratos. Decorre disso que o artista desenha cego, não é guiado pelo poder ocular, assim como no ato mesmo de escrever que nos é ocultada a visão da ponta da caneta. Além disso, como todo desenho é levado a cabo por um cego que procura se autorrepresentar, a obra final está sempre fadada ao insucesso, pois seu artista a desenha sem ver. Por isso falarmos de obra enlutada e arruinada; a obra dá provas da inaptidão visual de seu autor, que indica o acesso, sempre vetado aos seres humanos, ao momento originário que compõe qualquer obra.


[1] Mythologie blanche (La métaphora dans le texte philosophique) apud A Metáfora Viva, p. 439.
[2] Memórias de Cego, p. 71.
[3] Ibid, p. 74.
[4] Contingency, Irony and Solidarity, p. 127.
[5] Gramatologia, p. 33.
[6] Ibid, p. 54.
[7] Ibid, p. 56.

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