I – Contextualização Histórica
Os comentadores concordam que o Livre-Arbítrio é um dos trabalhos mais importantes de St. Agostinho, ao lado das Confissões e da Cidade de Deus. O Livre-Arbítrio teve uma complexa redação, estendendo-se por mais de sete anos, de 388 à 395. O livro I foi escrito na Itália antes da ordenação de Agostinho. Os livros II e III foram redigidos enquanto presbítero.
O todo da obra de Agostinho costuma ser dividido em trabalhos de juventude e de maturidade. São obras de juventude os chamados diálogos de Cassiciacum que nos mostram, entre outras coisas, nitidamente que Agostinho aprendia a filosofia platônica – via Plotino – ao mesmo tempo em que assimilava o conteúdo da fé cristã. Ele encontrou nas duas doutrinas a iluminação, pois via em ambas a busca pela mesma verdade. Das obras de maturidade podemos citar as Retratações e A Cidade de Deus.
A hermenêutica histórica geralmente reserva ao Livre-Arbítrio uma posição intermediária no corpus agostiniano, pois esse livro reúne elementos constitutivos do pensamento de juventude com elementos do período tardio. Daí a insistência dos comentadores que ressaltam a importância de se ler a obra nos seus próprios termos. Prova disso é que Agostinho não fez, ao longo do livro, nenhuma referência direta a outros trabalhos filosóficos e autores, nem a outras de suas obras.
Interessante é a concordância dos comentadores quanto a pouca formação filosófica de Agostinho. Afirmam que o desenvolvimento do bispo, nas suas questões fundamentais, foi bem lento. Nos primeiros trabalhos Agostinho esboçava interpretações pobres das Escrituras, porém já se mostrava familiarizado com a teologia da Trindade que ouvia de seu professor St. Ambrósio. Porém faltava contato com os textos clássicos da filosofia ocidental. No momento de sua conversão, Agostinho dominava parcamente o grego e conhecia muito pouco de filosofia além do que existia na discussão de Cícero e Varrão. De Aristóteles ele tinha lido somente uma tradução das Categorias1. De Platão, Agostinho não conheceu muito mais que uma tradução feita por Cícero do Timeu2 e algumas partes legadas a doxografia3. Esta muito influenciada pelo argumento de Cícero sobre a imortalidade da alma nas Disputas Tusculanas (que lemos em sala, Academica Priora e Posteriora), que se reportavam ao Fédon e ao Menon além de conter uma página traduzida do Fédro.
Pode-se considerar que Plotino foi o único grande filósofo o qual Agostinho trabalhou com profundidade. Há discussões entre os comentadores sobre quais obras Agostinho leu de Plotino, e alguns chegam a dizer que Agostinho só travou contato com Plotino através de Porfírio, aluno de Plotino que publicou o conjunto da obra de seu professor. Porém é consenso que os pensamentos de Plotino em Agostinho tiveram longas e profundas repercussões que levaram a apropriações críticas fundamentais ao longo de sua obra, que os insights do neoplatonismo de Plotino foram constantes em toda a extensão da obra de Agostinho.
Em que ponto está, então, a divergência fundamental com Plotino? Em poucas palavras, em Plotino, por um resquício platônico, a alma é identificada com o divino. Algo que o cristianismo não podia aceitar de maneira alguma. Agostinho então “corrige” o pensamento de Plotino ao trazê-lo para a doutrina cristã da criação, a qual leva a distinção entre criatura e criador. Ao olhar para dentro da alma não encontramos Deus como em Plotino, necessitaremos de um segundo momento que olhe por sobre a alma para encontrá-Lo. Nesse movimento a alma se torna sua própria dimensão, uma região inteira que aguarda para ser adentrada e explorada.
Mas voltando ao Livre-Arbítrio, a maior parte dos leitores procura entender o que Agostinho disse aqui sobre a livre escolha e sobre a vontade. Alguns acreditam que o Livre-Arbítrio foi o primeiro texto da história da filosofia a usar o termo “livre vontade” (libera voluntas) e Agostinho é apontado como o inventor da tão comentada “vontade”. Porém, só compreenderemos todas as facetas do problema se considerarmos o Livre-Arbítrio uma obra de filosofia, com toda a força do termo. Isso também exclui interpretações simplificadoras que afirmam que o livro foi escrito apenas contra os Maniqueos.
É fato que o contexto mais próximo a Agostinho na época, como ele mesmo afirma nas Retratações, é o do maniqueísmo. Fundada pelo sábio persa Mani (ou Manes [215-275]) a seita dos Maniqueos, a qual Agostinho foi membro por um longo tempo, resultava de um sincretismo do Zoroastrismo, do Cristianismo e do Gnosticismo. Os maniqueos tinham uma visão dualista do mundo que seria luta entre dois princípios irredutíveis, o bem e o mal, a luz (Ormuz) e as trevas (Ahrimán). Acreditavam que o espírito do homem é de Deus porém o corpo é do demônio. No homem o espírito e a luz estão presos por causa do corpo, portanto é necessário um ascetismo severo para iniciar o processo de liberação da luz presa. Por isso, desprezam a matéria. Na prática o maniqueísmo nega a responsabilidade humana pelos mals cometidos pois esses não são produtos da livre vontade, mas sim por haver um domínio do mal sobre nossa vida. O Livre-Arbítrio não é uma obra apenas anti-maniqueísta e além disso, podemos visualizar que a crítica aos maniqueos guarda uma boa dose de auto-crítica. Agostinho enfrentou sua fase maniqueísta de forma crítica e no limite cética.
O que talvez seja filosoficamente o mais importante no Livre-Arbítrio é o método agostiniano de se aproximar do problema. E Agostinho se aproxima do problema da livre vontade como um problema do conhecimento. Se indaga – “Como eu sei que sou livre?” O que importa aqui, sem dúvida, é a subjetividade, não uma pretensa objetividade. Esse conhecimento subjetivo é epistemologicamente fundamental. No Livre-Arbítrio podemos observar privilegiadamente como se constroem os argumentos agostinianos em torno do cogito, que aparece em várias de suas obras.
Porém há na leitura do Livre-Arbítrio obstáculos fundamentais ao texto antigo que não devem ser relevados. Por exemplo, o nome “Evodius” não é encontrado em nenhum dos manuscritos originais e foi pela primeira vez impresso na edição de Amerbach`s em 1506. Alguns comentadores veem aqui um sintoma da tendência moderna de ler o diálogo como um documento histórico e não como uma obra artística ou de pensamento. Originalmente o Livre-Arbítrio é um diálogo com duas partes em discurso direto. O diálogo inicia-se ex abrupto, sem introduções e sem formação de cena. Não há razões para atribuir ao interlocutor maior opiniões diferentes da do Agostinho histórico.
No Livre-Arbítrio, “Evódio” é o discípulo sincero com questões genuínas e preocupações sobre o que crê. Talvez, exatamente a construção de um arquétipo do ótimo leitor aos olhos de Agostinho. Salta aos olhos então uma relação: “Evódio como discípulo e o leitor como Evódio”.
Como dissemos, o Livre-Arbítrio combina elementos do pensamento de juventude e de maturidade de Agostinho. Isso provoca nos comentadores dois tipos de posicionamentos: os que acreditam haver uma inconsistência interna na obra e os que a leem como um todo coerente.
Os primeiros, que sustentam haver uma inconsistência teórica na obra, argumentam que o livro I espelharia o período de juventude – e otimista – de Agostinho enquanto que o terceiro seria condizente com a obra de maturidade, pessimista. Enquanto o livro I (1.12.25-1.14.30) é dominado pela “facilitas” o livro III (3.18.51ff) é dominado pela “difficultas”. Em outras palavras, no livro I Agostinho é otimista, muito otimista sobre o que os humanos podem fazer. No livro III essa visão se torna totalmente outra, o homem está imerso na dificuldade e na ignorância.
Os segundos argumentam pela unidade da obra, afirmam que esta é em si mesma evidente. Tomam a obra como pedagógica, pois os elementos básicos vão sendo expostos com cautela, um a um, e a argumentação só caminha após uma base estar plenamente criada, parece haver uma necessidade lógica dos próximos passos da argumentação.
Uma dessas bases da argumentação é claramente as passagens que enunciam o cogito, este aparece como ponto inicial, primeiro princípio na ordem do conhecimento, começo do indubitável.
II – Cogito
No pensamento de Agostinho o argumento do tipo cogito não é algo pontual. Lemos diferentes formulações desse tipo nas seguintes obras: Contra os Acadêmicos (Livros II e III), A Vida Feliz (2,7), Solilóquios (como vimos, em II,1,1), As Confissões, (VII, 10, 16), A Trindade (X,10,14) (XV,12,21), Cidade de Deus (XI,26) (a muito conhecida “Se duvido, existo”), Gênese ao senso literal (Genèse au sens littéral) (XII) e A música (VI). A obra que tratamos aqui, O Livre-Arbítrio, contém três momentos que aparecem um cogito: Em 1.7.16, do tipo “certissimum”, em 1.12.25 do tipo inquestionável e no 2.3.7 do tipo “manifestissimus”. Compreender esses vários tipos de formulações dos argumentos do cogito em Agostinho é reconhecer a complexidade e unidade do tema.
Uma das primeiras questões sobre o cogito agostiniano que nos aparece é: esse tipo de argumentação, o que nos é conhecido como cogito pela influência direta de Descartes, foi uma coisa antiga encontrada por Agostinho ou uma nova coisa produzida pelo Bispo de Hipona?
Para tentar responder devemos distinguir duas concepções de invenção. O conceito antigo de invenção (inventio) era a arte de encontrar a palavra correta ou o pensamento para uma determinada ocasião. A moderna invenção (invention) é a arte de fazer algo novo; tipicamente uma busca de solução para um problema dado de antemão.
Alguns comentadores, como Phillip Cary, pensa que o cogito foi realmente criado por Agostinho. Diz-nos que Agostinho oferece soluções a problemas que podem ou não ser os nossos, dependendo se aceitamos as premissas do problema. Se nós já achamos que algumas doutrinas são verdadeiras, então, ao serem encontradas boas soluções aos problemas (daquelas doutrinas) nos dá razão a acreditar que as soluções também são verdadeiras. Porém, se nós não aceitamos as premissas fundamentais, ou seja, se nós não pensamos que as doutrinas são verdadeiras, então tomamos as soluções como invenções na acepção moderna da palavra.
O mesmo comentador (Phillip Cary) nos diz que não é possível uma prova final que Agostinho tenha sido o primeiro a falar de um cogito. Porém ele diz provar que Agostinho, em vez de lançar mão de outros autores, criou a noção de cogito. Ao menos, com certeza, Agostinho dá a noção de cogito um novo começo.
Podemos apenas indicar que uma das vias de construção desse complexo interior que nos aparece sintetizado com as formulações do cogito seria a análise agostiniana da memória. A memória ocupa um papel central no livro X das Confissões. Lá Agostinho parece ter três fontes fundamentais ao tratar a questão da memória. A primeira é a antiga tradição retórica com suas artes da memória e da invenção ou descoberta. A segunda influência sem dúvida é a de Cícero, no livro I das Disputas Tusculanas em que é discutido a dificuldade de encontrar um lugar no mundo para a alma e examina seu poder de memória e invenção como potências de sua natureza. A terceira é o próprio tratado de Agostinho A Quantidade da Alma que contém uma elaboração neoplatônica de termos platônicos nos trabalhos de Cícero. Precisamente ao enfatizar a não-espacialidade da alma, esse tratado concebe-a como uma dimensão alternativa, um “espaço” próprio. O mesmo “espaço” se torna o mundo interior da memória nas Confissões X, um lugar onde Deus pode estar escondido e presente, procurado e encontrado dentro do sujeito humano.
Mas qual o problema agostiniano que gera um argumento como o do cogito? Parece ser esse: Como localizar Deus dentro da alma sem afirmar a divindade desta. Em outras palavras, Agostinho busca encontrar o divino dentro do eu, enquanto afirma que o divino é o inteiramente outro do eu. O problema é resolvido ao localizar Deus não somente dentro da alma, mas sobre ela, como sua criadora. Então, primeiro se adentra na alma para em um segundo momento olhar por sobre ela.
Ao ser cunhado um espaço interior, ao mesmo tempo pensa-se diferente o externo e o outro. Assim, podemos pensar esse interior agostiniano de diversas formas. Por exemplo, talvez esse interior possa ser um refúgio para o qual podemos escapar. Ou podemos pensá-lo como um tipo de experiência além ou aquém da razão. Somente ao considerarmos o mundo visível como externo ao sujeito podemos nos preocupar com a existência do exterior. Com a via aberta por Agostinho na questão do cogito pode-se reinventar um Plotino, os místicos medievais e os idealistas do século XVIII.
Sobretudo a consciência agostiniana nos coloca sobre o problema do outro, da alteridade. Ao explorar nossa consciência, como podemos identificar o que mais amamos como um outro? Podemos realmente conhecer o que está fora de nós? E amá-lo? Podemos amar o outro como um outro? Aqui podemos afirmar o distanciamento de Agostinho com o conceito platônico de inteligibilidade, ou seja, a noção aristotélica e neoplatônica que o verdadeiro conhecimento é uma espécie de identidade de conhecedor e conhecido. Se Aristóteles e Plotino estão certos então conhecer envolve diretamente excluir a alteridade. Conhecer algo como X é ser nada mais que X. Como vimos, as premissas fundamentais do cristianismo levam Agostinho a afirmar a diferença entre conhecedor e conhecido.
O interior se torna atrativo sempre quando o mundo “lá fora” se torna o lugar errado para encontrar o bem, quando aquele mundo se torna desinteressante, morto, sem sentido. Em qualquer momento que o mundo externo não providencia as respostas, o homem pode se voltar para o interior agostiniano.
Vermos como e porque Agostinho pensou em um cogito é entender algo sobre as possibilidades do autoatendimento disponíveis ao seres humanos no Ocidente.
III – A relação Descartes-Agostinho
É claro que quando Descartes publicou as Meditações Metafísicas várias cartas apontavam que o seu fundamento para o conhecimento já estava presente em Agostinho. Vejamos uma carta de Descartes a Colvius em 14 de Novembro de 1640:
“Eu sou forçado por você a esboçar minha consideração à passagem de St. Agostinho relevante ao meu “Penso, logo existo”. Eu fui hoje à biblioteca dessa cidade para lê-la e eu realmente encontrei que ele usa-a para provar a certeza de nossa existência. Ele continua mostrando que existe certa semelhança da Trindade em nós, que existimos, que sabemos que existimos e que amamos a existência e o conhecimento que temos. Eu, por outro lado, uso o argumento para mostrar que esse Eu, que é pensamento, é uma substância imaterial sem elementos corporais. Essas são duas coisas muito diferentes. O argumento ele mesmo é uma coisa simples e natural para concluir que alguém existe pelo fato deste alguém estar duvidando, que poderia ter ocorrido a qualquer escritor. Porém estou muito feliz em me encontrar em concordância com St. Agostinho, desejo silenciar as pequenas mentes que têm tentado encontrar falha no princípio.”
Como diz Jean Luc Marion, Descartes está concordando com Agostinho sobre o cogito, porém pontuando diferenças no uso do princípio.
Mas o que seria esta diferença de uso? Gareth Matthews esboça-nos algumas diferenças entre o cogito cartesiano e o agostiniano.
“De acordo com a posição geral de Agostinho, entretanto, conhecimento e entendimento, especialmente sobre as “coisas obscuras e escondidas”, pressupõem uma crença…Ele simplesmente não tem um projeto, como o de Descartes, de providenciar, sobre suas próprias fundações, uma reconstrução racional do conhecimento. Descartes usa o ceticismo para providenciar uma fundação independente para a reconstrução do conhecimento.”
Podemos acompanhar Simon Harrinson e apontar que esse tipo de análise simplifica imensamente o trabalho de Agostinho, nos diz que:
I – Agostinho não pressupõe uma crença
II- Agostinho busca reconstruir o conhecimento
III- Agostinho também faz uso de argumentos céticos, ou da dúvida cética
I- Se tomarmos o Livre-Arbítrio como um projeto pedagógico, como foi apontado, esse projeto é para Evódio e para o leitor, que buscam examinar suas crenças sem depender de uma autoridade, e para reestruturar o seu mundo de acordo com princípios racionais e sobretudo para fazerem isso por eles mesmos.
II- Quando dissemos que há um projeto de reconstrução do conhecimento no Livre-Arbítrio, este realmente existe, porém este ocorre no conjunto de crenças e desejos de Evódio e, por conseguinte, do leitor.
III- Em (1.12.25) quando Evódio diz “nescio” – ou seja, que não sabe – duas vezes, esse é um procedimento cético. Podemos lembrar também que nas Confissões (5.10.19) Agostinho descreve sua atração ao ceticismo da Nova Academia em suas primeiras obras. Mas é claro que, como indica Bermon, o cogito seria um grande argumento de refutação do ceticismo. (Então, os argumentos céticos são instrumentos, meios para se alcançar verdades indubitáveis.)
Claro que há diferenças entre os projetos agostinianos e cartesianos, porém a passagem acima indica que o cogito de Agostinho é mais interessante e complexo do que muitos comentadores costumam esboçar.
Enfoque dos Livros I e II do Livre Arbítrio
O movimento de formação do cogito de Agostinho é percebido através de recortes de suas obras, como observado por seus comentadores. Especialmente dentro do Livre Arbítrio há uma formulação própria até desencadear na prova da existência de Deus, presente no segundo livro. Para tal desencadeamento faz-se antes necessário seguir os passos de Agostinho ao longo de sua abordagem presente no primeiro livro.
Ao longo do texto a postura de Evódio, quanto à certeza de viver e de ter consciência de que se vive, respondendo à abordagem de Agostinho, guarda uma estreita semelhança com a adquirida pelo próprio Agostinho em relação à sua razão no início do segundo Livro dos Solilóquios. Lá a razão indaga ao autor “(…) sabes que existe?” e este respondo “sei”, mas que, no entanto, não sabe a origem de sua certeza. Em um segundo momento a razão questiona se Agostinho sabe que pensa e a resposta é, mais uma vez, afirmativa, assim como no Livre Arbítrio.
Ao longo do diálogo aqui em questão, entre Agostinho e seu interlocutor, vai ficando cada vez mais clara a presença do segundo como um discípulo, com uma participação muito limitada, com dúvidas pontuais, que servem para engendrar a formação do cogito agostiniano e a necessidade de uma prova racional da existência de Deus, não apenas a crença.
É possível perceber, no decorrer do livro, princípios predominantemente cristãos, com a filosofia em bases teológicas. Seja pelo fato de Agostinho acreditar que a crença é anterior à razão e que a possibilita4, regendo por este o andamento de sua obra, ou por em diversos momentos invocando a “ajuda divina”, para esclarecer pontos cruciais para a formação de seu pensamento.
Em uma observação primeira muito pontual sobre a Bíblia, o que é notado também por Harrison, podemos perceber logo na Gênesis o exercício do livre arbítrio de Eva ao escolher comer a maçã, e instituir o pecado. Através da sua escolha, desde o começo da criação, como é considerado pelo cristianismo, foi instituído o “pecado original”, desencadeando então toda a concepção de Bem e Mal.
Cabe ressaltar mais uma vez o ponto de vista de Harrison sobre o movimento do Livre Arbítrio como um todo, do otimismo inicial de Agostinho que se perde ao longo do livro. Nesta primeira abordagem há a imagem de que é possível que os homens atinjam a plena felicidade durante a sua vida, dependendo para isto de seu livre arbítrio, o que acaba por modificar-se especialmente no terceiro livro, mas só há oportunidade aqui para abordar a primeira forma: como é dada a relação do homem com o Bem ou o Mal e o processo até alcança-los.
Livro I – Abordagem inicial do mal
O mote central presente no Livro I do Livre Arbítrio é a origem e a essência do mal. Como destaca Simon Harrison, há a “dificuldade de reconciliar a existência e a natureza de Deus com a existência do pecado”5, já que é sabida a onipotência de Deus e Sua bondade, é uma contradição que exista o mal, que Deus permita que haja a sua existência.
A questão apresentada logo no início do primeiro capítulo pela fala de Evódio introduz o restante do andamento do livro: “será Deus o autor do mal?”. Os escopos cristãos auxiliam Agostinho e permitem um ponto de partida para o desenvolvimento de sua argumentação, pois seja pela crença ou posteriormente através da razão, é afirmada a suprema bondade de Deus, assim como tudo o que procede Dele, como apontado na Gênesis.
Se o mal originar-se de Deus é então algo fora de questão para o Bispo, outro campo deve contê-lo: o humano. Embora este mal não seja algo aprendido pelos homens, já que o processo de instrução é racional e esta faculdade é considerada a superior, o pecado ainda encontra conexão com a razão, através de um problema proveniente desde a Antiguidade: quando há uma supremacia das paixões em relação à razão.
Cabe aqui uma observação da semelhança desta tentativa de uma soberania racional, para dominar e consequentemente livrar-se das paixões, com o mesmo empreendimento proposto pelo estoicismo. Tendo Sêneca como um dos representantes da escola, este acreditava que ao observar e seguir os valores considerados corretos, viveríamos segundo a razão e desta forma poderíamos contemplar a Natureza e o Divino.
Após a análise de algumas situações mundanas em que há a inversão de dominação e a submissão da razão, é percebido por Evódio que o problema central de todos os casos e a origem do mal é a confusão entre o definido por um lado como lei civil/temporal, e a direção da vida dos homens com base nesta, com a lei eterna, por outro, pelas quais o homem deve realmente guiar sua vida. A solução lógica para este conflito é saber separá-las, o que acaba por determinar os dois tipos de homens que existem para Agostinho, que se guiam de acordo uma lei ou com outra.
A moral agostiniana começa já a ser formada, com base nesta lei eterna e em busca da vida feliz e de uma ordem perfeita. O homem também encontra a sua posição dentro desta ordem que, sendo a razão a maior das faculdades, coloca os homens em posição superior.
Cogito
O cogito de Agostinho começa o esboço de sua formação na segunda parte do livro I do Livre Arbítrio (7,16 – 11,22). Antes de saber a relação direta do homem com o Mal, é necessário certificar-se que o homem vive, o que diferencia o viver do saber que se vive. O fator dominação ganha espaço como parâmetro de comparação, já que os animais se submetem aos homens, não só pelo corpo, não envolve a força física, mas pelo poder da razão, a inteligência. Caso o critério fosse a força física e não a razão, há uma lista de animais que facilmente dominariam os homens, como é o exemplo dos elefantes e dos leões.
Evódio provoca um “contratempo”, como observa Bermon, ao questionar se todos os animais sabem que vivem, o que é respondido por Agostinho pelo viés da soberania da razão humana, afirmando o homem em posição superior, não utilizando como critério a ausência de razão nos animais, e acaba por legitimar de certa forma a dominação dos homens exercida sobre os animais. Esta busca pela distinção entre os homens e os animais explorada por Agostinho também é trata posteriormente por Descartes no Discurso do Método.
Agostinho ainda encontra amparo cristão neste ponto, já que na Gênesis, quando há a criação do homem por Deus, há a intenção que os homens dominem toda a terra, o mar e o céu, assim como todos os animais e as plantas. Bermon também contribui para o ponto6, observando que, sendo ainda o homem feito à imagem e semelhança de Deus, esta é em relação à razão, e não ao homem inteiro, justificando parte da fundamentação da obra de Agostinho.
Há essencialmente uma diferença de espírito entre os homens e os animais que possibilita a dominação. Ter a ciência da vida, como ocorre com os homens, é superior ao somente viver, como os animais.
No interior do homem também ocorre o mesmo, ele é sábio e está em ordem quando a razão domina todo o seu ser. Acima desta mente há a crença que só existe Deus e, sendo este o Bem, não pode contrariar a sua própria ordem, não pode Ele forçar que a razão seja submissa às paixões. A causa do pecado é transferida mais uma vez para outro campo: a livre determinação da vontade que o homem possui, podendo desfrutar da virtude ou não, afastando-se do Bem supremo e das leis divinas e por vezes escolhendo pelo Mal.
A determinação destes dois modos de realidade são tão concretas para o Santo que este refuta a idéia de que os bens corpóreos sejam considerados maus por eles mesmos, como é o exemplo do dinheiro, tudo está relacionado com ouso que o homem faz destes bens. O dinheiro, por exemplo, não é um mal caso o homem o utilize como um meio para a sua felicidade, mas se este for dado como um fim, como é o caso do avarento, a partir disto o dinheiro será visto como algo negativo e portanto condenado.
A relação que Agostinho guarda com a matéria possui resquícios estoicos também, já que o bem ou o mal não estão presentes no objeto, mas sim a partir do momento que há um sujeito que o utiliza, pelo modo e pelo objetivo que há em vista, o que sempre dever ser dirigido aos valores supremos.
A vertente da boa vontade, que escolhemos ao viver em busca do Bem através do caminho correto, é reforçada pela vivência das virtudes cardeais7 (a força, a temperança, a prudência e a justiça), das quais decorrem todas as outras virtudes. Estas quatro virtudes são adquiridas, e através de seu exercício e de sua prática ganham espaço na vivência humana, sempre buscando reprimir as paixões. Pela escolha da direção de sua vontade fica determinado também se o homem alcançará a felicidade ou não. Embora todos desejem a felicidade, nem todos seguem o caminho da virtude, que é fator determinante para ser verdadeiramente feliz.
No final do primeiro livro, esgotado o fato que o Mal não é proveniente de Deus, mas é o livre arbítrio é responsável por ele, através da vontade de escolher pelo quê guiar a vida, há uma volta à relação de Deus com os homens. Se o mal não vem diretamente Dele, mas se Ele nos deu o livre arbítrio, concedeu de certa forma a liberdade para pecar, não é uma forma indireta de Deus praticar o mal?
Livro II – A ligação do cogito com Deus
O argumento usado por Agostinho para responder a questão anterior retoma o exposto no primeiro capítulo do Livro I. Assim como Deus é responsável pelo supremo Bem, o mesmo também se sucede com a suma Justiça, que desencadeia em um sistema de recompensas que justifica a faculdade de livre arbítrio que Deus concedeu aos homens.
Essa concessão tem uma existência necessária e também lógica, pois para ser recompensado pelo Bem através de suas boas ações, os homens precisam fazer isto voluntariamente, assim como há os castigos pela má escolha, caso contrário todo este processo de seleção seria indiferente. Para haver um Bem, deve haver um termo de comparação, o Mal. Há a necessidade de um parâmetro de comparação (o Bem e o Mal) e de um censor (o livre-arbítrio), para que o homem escolha e atinja um fim, seja ele bom ou mau, e receba algo por isto.
Ainda que Deus dê a possibilidade de escolha entre os dois caminhos possíveis, Evódio insiste no argumento que a escolha foi dada, mas com a intenção que o homem escolhesse o modo bom, evitando todas as possibilidades de pecar. Para a solução deste impasse Agostinho coloca uma situação com duas partes: reconstruir a perspectiva de Deus e utilizar o conhecimento racional para tal solução, não atendo-se apenas à fé. O Santo reforça mais uma vez que, se é algo que vem de Deus, só pode ser algo Bom.
Depois de percebido o sistema de recompensas, há a necessidade de primeiro crer para depois entender, que é tratado ao longo de várias passagens Bíblicas e que fica muito nítido ao longo do movimento do Livre Arbítrio. O fato de Evódio apenas crer no argumento, mas não entende-lo racionalmente, leva ao segundo ponto exposto por Agostinho. Apenas a crença na existência de Deus, é algo que envolve somente a fé, mas não o entendimento da razão, própria dos homens. Existe a urgência de um movimento único da crença, procedida do entendimento, para a prova da existência de Deus e a formulação do cogito agostiniano.
Adquirindo a postura mais didática possível até agora, Agostinho expõe os três pontos para buscar esclarecer as dúvidas de Evódio: a evidência da existência de Deus, se todo o Bem é proveniente Dele e, finalmente, se o Livre arbítrio é um Bem, retomando assim todos os pontos que ficaram pendentes ao longo da exposição do primeiro livro.
O início da prova da existência de Deus parte do próprio homem, das três realidades possíveis ao seu ser: o existir, o viver e o entender. O homem, com a hierarquização dos seres com base nestes conceitos, mais uma vez é o mais completo já que possui os três, o animal duas e uma pedra ou um cadáver apenas uma. Há no livro de Bermon uma longa explicação sobre este assunto, buscando explicitar as composições possíveis entre o existir, o viver e o entender, e como estas se manifestam.
A formação do “entender”, pertencente à terceira realidade, a do homem, é composta para Agostinho devido a três fatores: os sentidos externos (os cinco sentidos humanos), o sentido comum (que administra as relações entre os sentidos) e, principalmente, o sentido interior (o conhecimento e exame racional e também a auto-reflexão). Como observa Bermon8, a ciência da vida (terceiro ponto) não se restringe à vida apenas (primeiro e segundo), porém a ciência da vida é a primeira que possuímos, e que possibilita as outras, racionalmente.
As três formas de percepção podem ainda ser comparadas hierarquicamente às realidades, já que o objeto apenas existe, enquanto o sentido, que o percebe, é composto pela existência e pela vida. Para Agostinho há uma forma de subordinação, do exterior com relação ao interior, já que “quem julga é superior àquele sobre o que julga”9. A superioridade da razão é mais uma vez afirmada, já que ela nos possibilita, além da ciência do mundo (sentidos externos), a percepção da vivência (sentido comum) e o próprio saber, que ela mesma, a inteligência, é uma faculdade superior com a sua respectiva capacidade de julgar. O saber diferencia-se ainda como uma percepção racional, caso contrário a sensação seria idêntica à ciência da vida e os animais não se submeteriam à dominação humana.
A partir da concepção do cogito de Agostinho chega-se finalmente à prova da existência de Deus, já que sendo a razão o grau mais alto ao se tratar do homem, há ainda a possibilidade de haver outra realidade superior a ela – Deus. Esta relação guarda a característica de não ser superior apenas pelo fato de minha razão ser inferior a Ele, mas porque nada é superior a Deus.
Se minha razão tem consciência das leis eternas e estáveis, que são supremas, isto é proveniente de algo exterior a ela, já que o existir e o viver não compreendem e não me mostram isto, há então uma realidade superior à própria razão que possibilita que ela tome ciência de seus princípios, algo de divino.
Para finalizar, como explicita Bermon sobre a prova racional da existência de Deus e a relação guardada entre ela e o cogito, “Deus é pensado pelo espírito como a condição de existência do pensamento e do juízo”10. E, retomando o questionamento inicial proposto a Evódio, se é preferível viver ou saber que se vive, com o andamento do livro, fica nítido que ao escolher a segunda opção também se escolhe outra vida, que guarda a particularidade de assemelhar-se à divindade, com a possibilidade de escolher um caminho para o Bem e para a felicidade, revelando o otimismo agostiniano.
Esquema retirado do livro de Simon Harrison:
Augustine’s Way into the Will – The Theological and Philosophical Significance of De libero arbitrio
Livro I
Problema Geral (I) Deus é responsável pelo mal? (1.1.1)
Questão específica (II) Qual a origem do mal que praticamos? (1.2.4)
Resultante da questão anterior (III) O que é o mal? (1.3.6)
Resposta para (II) – pela livre escolha da vontade (1.16.35)
Resposta para (III) – se voltar do divino para as coisas temporais (1.16.34)
Isso cria um outro problema
(IV) Deus é responsável pelo mal em virtude de dar a nós o método para praticá-lo? (1.16.35)
Livro II
A questão (IV) é respondida de acordo com três provas anteriores: (2.3.7)
que (V) Deus existe
(VI) Todas as coisas boas provêm de Deus
(VII) A livre escolha da vontade é uma coisa boa
então resposta a (IV) – Deus é responsável pela vontade ser uma coisa boa, nós somos responsáveis para usá-la para a prática do mal
Problema resultante (VIII) mas de onde vem a vontade má? (2.19.54)
Resposta para (VIII) – não há “resposta”, como o que não é de Deus não existe e é incognoscível. “Sciri enim non potest quod nihil est”(2.19.54)
o suficiente foi dito…
Livro III
…mas agora que o problema geral foi resolvido, outros problemas podem facilmente aparecer.
Outros problemas (IX) Necessidade e Natureza (3.1.1)
Resposta para (IX) – diferença entre o natural e o voluntário(livre) (3.1.3)
Outros problemas (X) Necessidade e o Imenso conhecimento de Deus (3.2.4)
Resposta para (X) – Deus tem um imenso conhecimento da vontade (3.4.11)
Problema geral (XI) Toda a Necessidade e a responsabilidade de Deus
Método geral de resposta (XI) – A Regra da Piedade: atitude de agradecer e glorificar (3.5.12)
Outros problemas (XII) Necessidade e nossa condição (3.19.51)
Resposta para (XII) – qualquer que seja a verdade da condição humana e sobre a forma como nós estamos aqui, nós podemos ter mais certeza que nós possuímos uma vontade livre.
Parabéns pela forma de escrever, letras grandes, assuntos bem divididos e com espaços definidos gostei muito.
Muito Obrigado pela visita e pelas considerações, Izabel. 🙂
Assunto interessante para quem como eu estuda Teologia.