Clement Greenberg ocupou uma posição central na crítica de arte feita nos Estados Unidos, empreendida dos anos trinta até a década de setenta. Procuraremos, nesta dissertação, analisar o artigo Abstrato, figurativo e assim por diante ampliando alguns de seus pontos, o que, para isso, recorreremos a uma série de textos do autor publicados em livro intitulado Estética Doméstica. O texto base parece estar dividido em três partes: na primeira, Greenberg busca desconstruir as possíveis generalizações que atribuam ao figurativo, ou seja, a uma obra visual que esboce uma imagem reconhecível, mais qualidade estética do que uma não-figurativa, ou vice-versa.
A segunda parte pode ser entendida em três momentos: no primeiro, Greenberg assume que, talvez, o não-figurativo seja realmente um sintoma de certo empobrecimento da arte, talvez houvesse uma superioridade artística do figurativo. Em um segundo momento, Greenberg ressalta a decadência constante que vêm sofrendo o figurativo nas últimas décadas, fato que encerra a necessidade da arte não-figurativa. No terceiro argumento da segunda parte, Greenberg eleva a decadência da arte ao limite e infere que, talvez a arte como um todo venha sofrendo uma acentuada decadência.
Enfim, na última parte do artigo o autor busca ampliar o insight que afirma que a arte não-figurativa é uma nova “linguagem”, e que talvez o desconforto que nós sentimos ao analisá-la seja certa nostalgia pelo antigo espaço tridimensional ilusionista, dito em outras palavras, talvez o art-world sinta falta da reprodução fidedigna da natureza, da arte mimética ela mesma.
I
No parágrafo de introdução do artigo Abstrato, figurativo e assim por diante, Clement Greenberg tenta situar o leitor nos embates de críticos de arte sobre o figurativo e o não-figurativo. Aponta que a alguns a arte não-figurativa é “considerada um sintoma de decadência cultural e até mesmo moral”1 e há também os que exortam radicalmente o figurativo. Para Greenberg, “a arte é uma questão estritamente de experiência, não de princípios, e o que conta em primeiro e em último lugar na arte é a qualidade”2 (Grifo nosso).
Analisaremos primeiramente algo sobre a noção de experiência vivida esteticamente cunhada por Greenberg. A influência kantiana é inegável, a experiência estética deve ser sempre “um fim em si mesma, como um valor definitivo, intrínseco”3 e essa experiência sempre remete a um juízo de valor, pois, “na mesma medida em que alguma coisa é intuída ou vivenciada esteticamente, seu valor estético também é avaliado, valorado, julgado”4. Ou seja, fatores extrínsecos à arte, como, por exemplo, fatores geográficos, de crítica social, de raça devem ser secundários a análise estética da obra, o que leva irremediavelmente a uma posição de gosto formada, ou seja, o gostar ou não de uma obra acontece no instante mesmo da relação observador-arte.
Quando afirma que não há princípios para a arte, Greenberg está pensando que é impossível enclausurar a boa ou má arte em qualquer padrão, antes da experiência estética real ter acontecido entre o crítico ou o observador e o objeto artístico. Nunca se pode inferir, então, que o figurativo garante superioridade artística sobre o não-figurativo ou vice-versa antes de ter vivenciado as obras uma a uma, com todas as suas peculiaridades. Não podemos avaliar mal, apesar de, em um artigo de Estética Doméstica, Greenberg ter sustentado o argumento que o gosto é objetivo e universal, ou seja, que há certo consenso entre os homens em considerar tão brilhantes artistas como Homero, Shakespeare, Leonardo, Cézanne, Mozart entre outros, esse consenso do gosto só pode acontecer, pois todos leram Homero, viram quadros de Cézanne e ouviram as sinfonias de Mozart, nunca antes da experiência real.
1 Clement Greenberg, Abstrato, figurativo e assim por diante.
2 Idem Ibidem.
3 Greenberg, Clement, Estética Doméstica, Editora Cosac &Naify, São Paulo, 2002, pág. 41.
4 Greenberg, Clement, Estética Doméstica, Editora Cosac & Naify, São Paulo, 2002, pág. 42.
II
No segundo grande bloco do texto, Greenberg tenta dar conta de um sentimento geral da época acerca do empobrecimento da arte. Nos mostra que até a pouco tempo na história da arte pictórica, esta era totalmente identificada com “o representativo, o figurativo, o descritivo.”5 A pergunta então torna-se óbvia: não ocorre um empobrecimento da arte com a eliminação do figurativo? Dada a grande importância da experiência estética desinteressada, Greenberg postula, nesse primeiro momento, que talvez o figurativo tenha mais força que o não-figurativo, pois traz consigo todo um passado identificável, reconhecível, que com mais facilidade o artista pode satisfazer as expectativas do espectador, ou chocá-las, o que, aliás, é característica da melhor arte de cada tempo.
Porém, Greenberg nota uma constante decadência da arte figurativa das últimas décadas. “A grande qualidade é atraída cada vez mais para o não-figurativo.”6. Talvez, mesmo a maior parte da arte não-figurativa seja ruim, mas o sintomático é que, já na década de cinquenta, ela é necessária e forte dentro do cenário artístico. Sua posição já estava, sem dúvida, consolidada.
Neste ponto da análise de Abstrato, figurativo e assim por diante deparamo-nos com um argumento no mínimo curioso, por parte de Greenberg. Todo um parágrafo é dedicado, ao melhor estilo rousseauísta, a uma crítica da arte contemporânea em detrimento à arte do passado. A crítica greenberguiana desemboca na tese de que há um declínio generalizado na arte contemporânea. Se esta, por mais que sofra a pressão da arte do passado não consegue atingir sua excelência, então a arte, ou melhor, a qualidade da arte, é totalmente dependente dos fatores estruturais da época que fora criada. Argumento que pode soar conservador demais. Por que uma arte de uma época pós-metafísica, como a nossa, não pode satisfazer o gosto dos homens pós-metafísicos, como os nossos? Notaremos que Greenberg parece defender-se de nossa pergunta nos parágrafos imediatamente a seguir.
O esteta nova-iorquino expõe-nos dois fatores que podem dificultar o trabalho do crítico de arte contemporânea. Talvez as mudanças desta, acontecessem em um ritmo tão grande que não há um distanciamento necessário para a crítica, o que irremediavelmente turva sua análise. O segundo argumento, que aparece na forma de um insight, Greenberg o pensa como uma hipótese de que o sentimento de empobrecimento da arte, talvez, é advindo dos “problemas normais postos por uma nova “linguagem”8. Argumento que procurará desenvolver na última parte da nossa divisão do artigo Abstrato, figurativo e assim por diante.
7 Greenberg, Clement, Estética Doméstica, Editora Cosac& Naify, São Paulo, 2002, pág. 101.
8 Greenberg, Clement, Abstrato, Figurativo e assim por diante.
III
*todos os termos com aspas são de Clement Greenberg, e estão em Abstrato, figurativo e assim por diante.
Greenberg inicia a ampliação da tese que expõe o não-figurativo como uma nova linguagem traçando um apanhado geral da história da arte. Como podemos ver, uma característica do autor é sempre situar seus argumentos na linha histórica da arte. Diz-nos que, do século XIII até meados do século XIX o pintor necessitava “estabelecer uma ilusão de espaço tridimensional sobre uma superfície plana”. O advento da pintura moderna foi tornando o espaço pictórico mais raso, até suprimir totalmente a ilusão tridimensional. Uma vez que a esta foi, por longos séculos, o denominador comum da pintura, sem dúvida sua supressão abrupta pode explicar nosso desconforto com a arte não-ilusionista.
A pintura não tem mais, nos dias de hoje, o objetivo de passar uma ilusão de realidade, ela torna-se um ente concreto. Esse tipo de experiência mais “física”, para Greenberg, impõe ao espectador algo mais restrito, menos imaginativo, mas o que é o mais surpreendente é que a nova arte consegue isso com uma transformação da sua própria estrutura fundamental. Não localizando entes reconhecíveis no espaço pictórico, o espectador tem dificuldades em encontrar as ênfases, o que possibilitará uma assimilação mais geral do objeto artístico. O campo pictórico se torna mais homogêneo, facilitando a assimilação do quadro como um “todo”. Antes de prosseguirmos, chamaremos atenção para o choque que Greenberg deve ter causado no senso comum artístico de sua época, ao considerar a arte abstrata uma experiência “menos imaginativa”. A arte abstrata parece ser a elevação ao limite da necessidade de imaginação na pintura. Simplesmente parece não haver juízo estético de nenhum tipo na arte não-figurativa, se a imaginação não fizer seu papel de estabelecer algum tipo de coesão.
Greenberg parece tecer, no penúltimo parágrafo de seu texto, algo que seria uma contra-argumentação dos artistas e críticos contemporâneos em relação aos do passado. Talvez aqueles gostem mais da “corporeidade” da arte contemporânea, consigam absorver dela mais “interesse humano”. Há alguns outros argumentos, mas o que Greenberg parece insistir é o papel fundamental do distanciamento da arte em relação à crítica. Se não houver o distanciamento necessário a crítica pode, no máximo, circunscrever as inovações da melhor arte. Greenberg sabia dos problemas do não distanciamento e os reafirma ostensivamente, em diversos textos.
Todo o penúltimo parágrafo se parece com uma ressalva de alguém que, necessariamente está enfrentando a arte de seus dias; o distanciamento crítico-arte não é possível desde o início. Por isso ele a seguir propõe que os futuros especialistas talvez possam encontrar mais semelhanças entre a arte contemporânea e a do passado.
O último parágrafo é extremamente importante. Greenberg primeiramente tenta esclarecer aos leitores que todo o esforço do ensaio em tentar compreender as inovações, os prós e contras da arte não-figurativa e a sua comparação com a figurativa não deve enfraquecer o “quê” deve ser pintado, ou seja, o “como” se pintar, não pode agir como um gene epistático sobre o quê é pintado. Greenberg assume que sua esperança é diminuir, talvez desconstruir, a dicotomia entre figurativo/não-figurativo, para que a ilustração ela mesma ganhe em força. Fazendo uma comparação ruim com a filosofia platônica, talvez o que Greenberg desejou fazer é semelhante ao apagar a linha que separa mundo aparente/mundo das formas do platonismo, mas isso é feito em busca de um holismo, ou seja, ao explodir os dualismos conceituais, todos os elementos da ilustração tornam-se importantes na sua valoração estética.
A última frase, infelizmente, pode gerar diversas interpretações. “Simplesmente não se trata de um valor que é realizado mediante, ou enquanto, acréscimo.” A que defenderemos: Greenberg reforça que o acréscimo de elementos conceituais no espaço pictórico não garante maior qualidade estética. A mesma questão discutida na primeira parte do texto, quando são comparadas a Divina Comédia, que tem “significado alegórico e anagógico” e a Ilíada que tem somente “significado literal”. Pode até haver maior qualidade estética da Divina Comédia, mas não é a maior quantidade de significados que a garante. A tarefa do novo crítico pós-greenberguiano, entre outras, é exatamente a de identificar os elementos conceituais e posteriormente, buscando dar voz máxima a ilustração, desconstruí-los, e como se fosse possível, esquecê-los.
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