O Zen remonta a sua gênese a um dia por volta de 400 a. C. quando o Buda segurou uma flor e um monge chamado Kashyapa sorriu. A partir desse dia esse ensinamento o mais simples dentre todos e ainda assim o mais profundo foi passado de uma geração para a outra. Pelo menos essa é a história que foi registrada pela primeira vez mil anos depois, mas na China, não na Índia. Aparentemente o Zen era muito simples para ser notado na sua terra de origem, onde ele permaneceu um ensinamento invisível. Foi só quando um monge indiano chamado Bodidarma trouxe esse ensinamento para o Reino do Meio que o Zen finalmente desembarcou. Esse bárbaro barbado que tornou-se o Primeiro Patriarca do Zen Chinês era apenas um pouco mais perceptível que o sorriso de Kashyapa, mas ele era perceptível, aparecendo em uma breve nota biográfica registrada pelo seu discípulo, T’an-lin (506-574), e em uma biografia mais extensa de Tao-hsuan (596-667) em seu Hsukaosengchuan. Mas o evento que trouxe Bodidarma à atenção de ambos historiadores e hagiógrafos aconteceu em ou por volta de 534 quando ele escolheu Hui-k’o como seu sucessor e deu-lhe uma cópia do Lankavatara. Bodidarma disse-lhe que tudo o que ele precisava saber estava nesse livro, e o Zen e o Lanka estão conectados desde então, se já não estivessem conectados na Índia.
O título desse livro que continha tudo o que Hui-k’o precisava saber é uma combinação das palavras Sânscritas lanka e avatara. Comentadores chineses dizem que lanka significa “inalcancável.” Talvez sim, mas não sei em que eles se baseiam. A única definição que posso encontrar é que a palavra refere-se à ilha que nós chamamos agora de Sri Lanka ou à sua cidade principal. Talvez o nome derivou-se da raiz lankh ou lang, que significa “ir” ou “ir além” respectivamente. Mas se isso fosse verdade, o significado seria “alcançável.” E assim o é de acordo com as crônicas Budistas, pois o próprio Buda foi para Lanka em três ocasiões, uma delas para transmitir os ensinamentos desse sutra. Tais crônicas, entretanto, foram compiladas séculos depois das supostas visitas do Buda. A mais antiga aparição do Budismo na ilha não ocorreu antes de 150 anos depois do Nirvana de Buda, quando Mahinda, o filho do Rei Ashoka (cerca de 250 a. C.), introduziu o Darma para os habitantes da ilha. Em relação à segunda parte do título, avatara, significa “alinhar ou descer,” e usualmente refere-se à aparição de uma deidade sobre a terra – e a partir disso temos a palavra avatar. Assim, o título do sutra pode ser traduzido como Aparição em Lanka, referindo-se à suposta visita do Buda à ilha.
Uma vez que o sutra apareceu pela primeira vez na China na forma de um texto em Sânscrito no início do século quinto, ele foi provavelmente composto na Índia na metade do século anterior, com uma margem de erro de uma década ou duas. E uma vez que os primeiros dois monges que trouxeram cópias em Sânscrito para a China eram ambos da região então chamada de Índia Central (a bacia hidrográfica do Ganges em Uttar Pradesh), este seria um local provável para a sua origem. Ademais, diferentemente de outros sutras Mahayanas, que foram escritos no Sânscrito Híbrido Budista, o Lankavatara foi escrito em Sânscrito Clássico. O Sânscrito Clássico era a língua dos Brâmanes e da corte. E na metade do quarto século, a corte era localizada na cidade da Índia Central de Patna, nas margens do Ganges. Esta era a corte de Samudragupta o Grande (cerca de 335-375).
Samudragupta era um Hindu devoto, mas ele também respeitava outras tradições religiosas e certa vez deu permissão ao Rei Meghavarna, o governante de Lanka, para a construção de um monastério Budista em Bodh Gaya, o local da Iluminação do Buda. Talvez esse tenha sido o evento que inspirou o nosso autor a localizar o seu texto na ilha. E talvez ele compôs sua obra almejando que ela alcançasse os ouvidos e olhos de um cakravartin, ou monarca universal, que era como Samudragupta frequentemente referia a si mesmo – e a quem o autor do Lanka também refere-se em vários locais. Para além de sua destreza militar, Samudragupta também era um habilidoso músico e a descrição detalhada dos modos melódicos perto do início do Capítulo Um deve ter sido escrita com alguém em mente.
Outra possibilidade para o local de origem do sutra seria a própria Lanka ou suas imediações. Embora o Teravada fosse a forma de Budismo dominante na ilha nos últimos mil anos, antes disso Lanka era um bastião da escola Yogacara. E este sutra foi claramente destinado para uma audiência familiar com os conceitos estruturantes dessa escola do Budismo. Mas o que coloca o Lanka à parte é que ele aponta os leitores para além dos ensinamentos da embrionária Yogacara para suas próprias mentes. Apontar diretamente para a mente era e ainda é um marco da escola Zen do Budismo. E o homem que trouxe o Zen para a China era da área logo ao norte de Lanka, perto do porto marítimo de Kanchipuram. É claro, a maioria dos estudiosos duvidam que o Zen alguma vez existiu na Índia – e assim eles necessariamente veem Bodidarma como uma invenção dos hagiógrafos chineses. Eles sustentam que o Zen teve origem chinesa, onde ele apareceu pela primeira vez nos séculos seis ou sete e onde então foi conjurada a sua origem indiana e a pessoa de Bodidarma para provê-lo de legitimidade histórica.
Esse argumento fez surgir muito debate e é algo que não tenho nada proveitoso para adicionar, além de questionar: se o Zen originou-se na China, de onde veio este texto? Se houve alguma vez um sutra que apresentou o ensinamento basilar do Zen, este é o sutra. Ele é incansável em sua insistência na primazia da realização pessoal e é distinto a qualquer outro ensinamento atribuído ao Buda em relação a isso. D. T. Suzuki, o tradutor anterior do Lankavatara, colocou isso da seguinte forma, “A razão porque Bodidarma passou este sutra a Hui-k’o como contendo a essência do Zen Budismo deve ser buscada nisso, que o refrão constante do Lankavatara é a suma importância de uma percepção interior (pratyamagati) ou autorrealização (svasiddhanta).” (Estudos sobre o Lankavatara Sutra, pg. 102)
De fato, esse é o refrão constante do sutra. Mas o sutra não é apenas sobre o Zen; ele é firmemente enraizado no que tornar-se-ia depois conhecido como Budismo Yogacara também. E o sutra também foca no caminho do bodisatva que ainda domina o Budismo Mahayana. Mas ele faz tudo isso muito além dos locais normais do discurso Mahayana, na distante ilha de Lanka, onde o sutra abre com o Buda instruindo um dos mais antigos reis serpentes indianos no Darma. Conforme o Buda reaparece vindo do reino aquático do rei serpente, Ravana, o governante de Lanka, convida-o para sua capital próxima, almejando um discurso similar. O Buda concorda e procede para instruir o rei na natureza ilusória do que os Budistas chamam de darmas, todas aquelas coisas que pensamos como reais, sejam elas tangíveis, intangíveis ou meramente imaginadas.
Seguindo esse capítulo introdutório, Mahamati surge entre os bodisatvas reunidos e apresenta ao Buda uma série de questões, as quais o Buda responde dizendo que os próprios termos nos quais as questões são colocadas são projeções próprias e imaginações dos outros e como tais são equivalentes a uma ilusão*. [Nota do Tradutor para o Português: a expressão idiomática que traduzo aqui como ilusão é pie in the sky, ou literalmente, torta no céu.] Uma declaração sobre torta torna-se assim uma declaração sobre não torta.
Assim como o Sutra do Diamante ensina o desapego aos darmas, e o Sutra do Coração ensina a vacuidade dos darmas, o Lankavatara ensina a não-projeção dos darmas, que não haveriam darmas para serem vacuosos ou para desapegar deles se não os projetarmos como existentes ou não existentes em primeiro lugar. O Buda diz a Mahamati, “Porque várias projeções das mentes das pessoas aparecem na frente delas como objetos elas tornam-se apegadas à existência de suas projeções.” Então como elas livram-se desses apegos? O Buda continua, “Ao tornarem-se conscientes que as projeções não são nada além da mente. Assim, elas transformam seus corpos e mentes e, por fim veem claramente todos os estágios e reinos da autoconsciência dos tatagatas e transcendem as visões e projeções considerando os cinco darmas e os modos da realidade.” (Capítulo 2, LXIV)
Tendo proclamado a natureza ilusória das projeções, incluindo as categorias Yogacara tais como os cinco darmas e os três modos da realidade, o Buda direciona Mahamati à sua fonte, ou seja, a própria consciência. Ele então explica como a consciência funciona e como a liberação consiste em realizar que a consciência é uma ficção auto-fabricada, apenas outra ilusão, e como os bodisatvas transformam as suas consciências no tatagata-garbha sem projeções, ou útero do qual os budas surgem. Esse ensinamento não é algo que todos estão preparados para ouvir. Mas Mahamati continua a fazer questões, e o Buda continua a responder, porém de uma forma que sempre conduz o seu discípulo de volta para os dois ensinamentos que fundamentam este sutra: o “nada exceto a mente” da Yogacara e a “autorrealização” do Zen.
Conforme o Buda guia Mahamati através das categorias conceituais do Budismo Mahayana e aquelas de outros caminhos também, ele lhe diz que essas também são fabricações da mente e que alcançar a terra dos budas requer o transcender de todas as paisagens conjuradas, incluindo aquela do tatagata-garbha. Sumarizando o processo pelo qual os praticantes seguem esse ensinamento o Buda diz, “Aquele que vê que a energia-hábito das projeções do passado sem começo é a causa dos três reinos, e que entende que o estágio do tatagata é livre das projeções ou qualquer coisa que surge, alcança a realização pessoal do conhecimento do buda e uma maestria sem esforço sobre suas próprias mentes.” (Capítulo 2, Seção VIII)
Assim, o sutra tece juntos os fios da Yogacara e do Zen, além dos conceitos únicos do Mahayana como o não-sujeito sujeito do tatagata-garbha, e ele faz isso por trezentas páginas, na maior parte em prosa, e com recapitulações ocasionais em verso. Embora ele tenha sido há muito reverenciado como um dos seis textos sagrados do Budismo Yogacara, ele também é o texto que os primeiros mestres do Zen chinês voltaram-se para instrução. Se ele foi ou não um produto dos mestres Zen indianos é um ponto discutível, pois nem o Lanka nem o Zen aparecem em um registro histórico até ambos aparecerem na China no século quinto.
O primeiro a aparecer foi o sutra. Ele chegou na bagagem de um monge da Índia central chamado Darmakshema. Ele chegou no oásis da Rota da Seda de Tunhuang em 414, senão um ano ou dois antes, e ele ou aprendeu Chinês rapidamente, ou ele o fez antes em um ou outro oásis onde ficara em seu caminho até a China. Logo depois de fixar residência em Tunhuang ele começou a trabalhar em uma tradução do Nirvana Sutra e logo estabeleceu reputação como um habilidoso tradutor. Em adição às suas habilidades linguísticas, ele também era conhecido por sua habilidade em profecia e mágica. E quando Tunhuang foi conquistado pelo estado vizinho de Liang do Norte em 420, ele foi convidado pelo seu rei a servir como conselheiro e continuar o seu trabalho de tradução na capital de Liang do Norte, Kutsang (moderna Wuwei), 800 quilômetros ao sudeste. A mágica e a profecia eram as principais razões do porquê aqueles no poder financiavam a tradução de sutras – os poderes associados aos sutras e mantras tinham aplicações políticas e militares.
Durante os próximos doze anos, Darmakshema distinguiu-se como conselheiro e também como tradutor. E conforme a reputação do monge espalhava-se, o governante do estado de Wei do Norte convidou-o à sua capital Pingcheng (moderna Tatung). Embora Pingcheng fosse a 1200 quilômetros ao leste e cruzasse dois grandes desertos, a contínua sobrevivência de Liang do Norte dependia de suas boas relações com seu vizinho muito maior e mais poderoso, e o seu governante não teve escolha além de obedecer. Entretanto, o patrono de Darmakshema temia que seu monge conselheiro pudesse revelar segredos de estado ou usar os seus poderes mágicos contra ele, e logo após Darmakshema deixar Kutsang o governante de Liang do Norte mandou matá-lo.
Enquanto o assassinato do monge é aceito como ocorrendo em 433, um relato diz que ele não foi morto enquanto viajava para o leste para a capital de Wei do Norte. Em vez disso, ele estava viajando para oeste, para o reino de Khotan na Rota da Seda, em busca de uma cópia mais completa do Nirvana Sutra quando o governante de Liang do Norte ouviu dizer que seu monge conselheiro estava transmitindo secretamente técnicas sexuais aos membros do harém real e ficou tão enfurecido que o matou. É claro, esse relato daria vantagem ao governante de Liang do Norte e foi provavelmente inventado para absolvê-lo da sua traição. Mas isso não funcionou, pois o Wei do Norte em breve colocou um fim em Liang do Norte. Mesmo assim, o que Darmakshema deixou para trás foi a primeira tradução conhecida do Lankavatara. De acordo com um catálogo do Cânon Budista feito por Tao-hsuan em 664, essa tradução ainda subsistia mais de duzentos anos depois. Mas no momento em que o próximo catálogo foi feito em 730, ela havia desaparecido. E não foi mais vista desde então.
Isso era o que frequentemente acontecia com os sutras, especialmente aqueles como o Lankavatara que necessitava de um professor para revelar o seu significado. Eles eram traduzidos por solicitação imperial ou por incentivo de patronos ricos, e, uma vez traduzidos, cópias eram feitas e distribuídas aos monastérios Budistas ao redor do país. Mas com frequência terminavam nas bibliotecas dos monastérios sem serem lidos. Esse foi o destino de centenas de sutras traduzidos durante esse período. Um tradutor tinha sorte se metade dos textos que produzia eram de fato utilizados pelos praticantes, muito menos ainda mantidos em circulação. Em relação a isso, Darmakshema foi melhor que a maioria. Das duas dúzias de obras atribuídas a ele, mais da metade sobreviveram.
A segunda tradução do Lankavatara teve mais sorte. Essa tradução foi feita por Gunabhadra, outro monge da Índia Central. Mas, diferentemente de Darmakshema, ele viajou por mar em vez de pela rota terrestre. Em 435, dois anos depois do assassinato de Darmakshema, Gunabhadra chegou no porto marítimo meridional de Nanhai (Kuangchou), e parece que ele era esperado. Assim que alcançou a China ele foi convidado pelo governante do reino de Liu Sung à sua capital em Chienkang (Nanching). E uma vez que ele chegou a Chienkang, Gunabhadra permaneceu em torno da capital de Liu Sung pelos próximos trinta anos, enquanto trabalhou em traduções, auxiliado, diz-se, por uma equipe de 700 pessoas. Um dos locais que ele ficou foi o monastério de Chihuan em Tanyang. Este era o local que ele morava quando completou a sua tradução do Lankavatara em 443.
Quando Gunabhadra morreu em 468, além do Lankavatara, foram-lhe atribuídos a tradução de cinquenta outros textos, incluindo o Sandhinirmocana Sutra, que era o mais antigo texto conhecido do Budismo Yogacara. Embora não saibamos se ele ensinou sobre o Lankavatara ou se tinha familiaridade com o Zen, dois séculos depois a Escola do Zen do Norte atribuiu a Gunabhadra o trazer do Zen para a China, tamanha a importância do sutra que ele traduziu.
Assim, pela metade do Séc. V, haviam duas traduções do Lankavatara disponíveis na China. Mas ainda não havia registro do sutra sendo ensinado ou estudado e nenhum registro do Zen até outro monge chegar. O nome deste monge era Bodidarma. Ele era do Sul da Índia, e também chegou por mar. Ninguém sabe exatamente quando, mas a sua biografia por Tao-hsuan diz que ele chegou em Nanhai em algum momento antes de 479. Ao chegar ele também viajou para o norte, mas manteve-se tão discreto que não sabemos nada sobre sua vida, exceto o que os hagiógrafos adicionaram vários séculos depois, até ele aparecer em uma caverna perto do Monastério Shaolin. No seu caminho até lá, talvez ele viajou para Chienkang, e talvez foi ali que ouviu falar da tradução de Gunabhadra do Lankavatara. Talvez ele tenha chegado cedo o suficiente para um encontro entre os dois monges. Mas, independentemente das suas peregrinações, ele por fim estabeleceu-se na montanha sagrada de Sungshan, a sessenta quilômetros ao sudeste de Loyang. A caverna onde ele supostamente meditou por nove anos ainda está lá na montanha atrás de Shaolin. Foi ali também que ele teria transmitido o ensinamento do Zen e uma cópia da tradução de Gunabhadra do Lankavatara para Hui-k’o.
Ironicamente, também foi em Loyang e por volta da mesma época que uma terceira tradução do Lankavatara foi feita. Desde quando o Wei do Norte moveu sua capital de Pingcheng para Loyang em 494, esta tornou-se o maior centro urbano do Norte da China, com meio milhão de residentes e milhares de monges estrangeiros estabeleceram-se nela. Entre eles havia um monge do Norte da Índia chamado Bodiruchi, que chegou ali em 508 pela Rota da Seda.
O local onde Bodiruchi viveu enquanto trabalhava em traduções era o Monastério Yungning, e foi ali que ele completou a sua tradução do Lankavatara em 513. Um relato de templos Budistas em Loyang publicado em 547 por Yang Hsuan-chih registra um monge indiano chamado Darma (presumivelmente Bodidarma) observando que ele nunca tinha visto algo tão impressivo como o pagode desse templo que tinha 91 metros de altura, que foi construído em 516 e queimou-se completamente em 534. Independente de Darma ter sido Bodidarma, ainda assim seria estranho se os dois monges não tivessem se encontrado durante esse período. Tanto Bodiruchi quanto Bodidarma também teriam morrido em Loyang, com a diferença entre um e dois anos um do outro (cerca de 534 e 536, respectivamente) no caos que acompanhou a divisão do Wei do Norte em Wei do Leste e Wei do Oeste. Alguns relatos até atribuem a morte de Bodidarma por envenenamento por discípulos invejosos de Bodiruchi. Embora seja muito provável que Bodidarma sabia sobre a tradução de Bodiruchi do Lanka (e talvez a de Darmakshema também), é claro que ele e os primeiros patriarcas do Zen preferiam a versão de Gunabhadra. Foi este o texto que ele passou para seu sucessor, e seu sucessor para seu sucessor, e assim por diante.
Assim, tanto o ensinamento do Zen quanto o uso da tradução de Gunabhadra do Lankavatara em sua transmissão começaram na área de Loyang na primeira metade do Séc. VI. Mas Bodidarma e Hui-k’o não eram os únicos utilizando o Lanka. Entre os quinhentos monges cujas biografias estão registradas no Hsukaosengchuan de Tao-hsuan, relata-se que por volta de doze pessoas escreveram comentários sobre ou ensinaram o Lanka na segunda metade do século sexto ou na primeira metade do século sétimo. Embora nenhum desses comentários inaugurais tenham sobrevivido, as menções a eles atestam a importância do Lanka entre certos praticantes. E devo enfatizar esse ponto sobre certos praticantes. O Lanka não é um texto que acolhe o leitor casual. Um entendimento dos seus ensinamentos requer um professor, ou um carma incrivelmente bom. E tais professores e carma sempre foram raros. Houve momentos que o Lanka alcançou uma certa popularidade, mas ele nunca foi um texto cuja leitura era difundida – a sua reputação, sim, mas não seu número de leitores.
Foi durante a primeira metade do século sétimo que vemos uma transição no uso do Lanka pelos primeiros mestres Zen eles próprios. Bodidarma tinha um punhado de discípulos, assim como o Segundo Patriarca Hui-k’o, e o Terceiro Patriarca Seng-ts’an. Entretanto, o Quarto Patriarca Tao-hsin (morto em 651) tinha mais de quinhentos discípulos e o Quinto Patriarca Hung-jen (morto em 675) tinha mais de mil. A causa dessa repentina florescência foi o estabelecimento dos primeiros monastérios Zen na China.
Até o Séc. VII, a transmissão do Zen era baseada em um relacionamento privado entre um professor e alguns estudantes. Assim, não surpreende que o Zen tenha permanecido uma tradição oculta. Em tal cenário, um texto como o Lankavatara poderia ser usado a seu favor. Mas com o estabelecimento de comunidades Zen em larga escala, os mestres Zen buscaram por algo mais adaptado às audiências maiores com vários graus de compreensão. Eles encontraram o seu texto no Sutra do Diamante. Este era o sutra que o Quinto Patriarca transmitiu para Hui-neng, o triturador de arroz iletrado (ou assim ele apresentava-se), que tornou-se o Sexto Patriarca em 672. Ironicamente, essa transmissão ocorreu com o Lankavatara formando o pano de fundo. Foi apenas depois de Shen-hsiu e Hui-neng, os dois candidatos a tornarem-se sucessores do Quinto Patriarca, terem escrito seus poemas concorrentes na parede do monastério, previamente programada para receber cenas do Lanka, que a direção futura do Zen e o patriarcado foram decididos. Para os leitores interessados, a história desse evento, imaginária ou não, é contada em detalhes no início do Sutra da Plataforma.
Mesmo que o Sutra do Diamante tenha substituído o Lankavatara em termos de tornar o ensinamento do Zen mais acessível às audiências maiores, o Lankavatara continuou a atrair aqueles que apreciavam o desafio e as recompensas do texto mais difícil. Uma dessas pessoas foi Shen-hsiu, o perdedor da competição de poesia que fez de Hui-neng o Sexto Patriarca. Ele foi um grande admirador do Lanka. De fato, ele pediu para ser enterrado abaixo de um outeiro chamado Monte Lanka, onde seu corpo permanece desde sua morte em 706. E ele não era o único interessado no sutra.
Em 698, a Imperatriz Wu Tse-t’ien pediu para um monge do reino de Khotan, da Rota da Seda, produzir uma nova tradução do Lanka, uma que ela pudesse ler. O monge khotanês era Shikshananda, e de acordo com a solicitação da Imperatriz ele preparou um rascunho grosseiro. Mas quando terminou, pediu e lhe foi dada permissão para voltar para casa e a tarefa de revisar esse rascunho recaiu sobre Mi-t’uo-shan, um monge do reino da Rota da Seda chamado Tokhara, que foi auxiliado pelos monges chineses Fu-li e Fa-tsang.
A tradução conjunta deles foi completada em 704 e pouco tempo depois Fa-tsang escreveu um comentário ao sutra. Embora fosse apenas um sumário ocupando apenas oito páginas no Cânon Taisho (volume 39), ele inclui algumas informações interessantes. Por exemplo, Fa-tsang disse que ele e seus companheiros tradutores tinham cinco cópias em Sânscrito sobre as quais trabalharam. Ele também notou que no reino de Khotan da Rota da Seda, de onde Shikshananda era, dizia-se que o Lankavatara existia em versões muito maiores, uma consistindo de 100.000 estrofes e outra de 36.000, comparadas com a versão de um pouco mais de 1.000 estrofes que ele e seus colegas traduziram. É claro, declarações similares foram feitas sobre outros sutras cujas tais versões épicas nunca foram encontradas. Mas mesmo se fora apenas um relato da fantasia de alguém, isso sugere que essas pessoas pensavam suficientemente bem do Lanka, na Índia ou na Rota da Seda, para fazer cópias e distribuí-las e que alguém o elevou a membro daquele panteão de escrituras muito estupendas para os olhos humanos, mas não para a imaginação humana.
Outro item de interesse é um ensaio escrito em 708 por um monge chamado Ching-chueh intitulado Leng-ch’ieh-shih-tz’u-chi (“Registros dos Mestres do Lanka”). Nesse ensaio ele lista os primeiros patriarcas do Zen começando com Gunabhadra, seguido por Bodidarma, Hui-k’o, Seng-ts’an, Tao-hsin, Hung-jen, e então Shen-hsiu e outros estudantes de Hung-jen, em vez de Hui-neng. Essa era a linhagem que tornou-se conhecida como a Escola do Norte do Zen, que opôs-se à seleção de Hui-neng como Sexto Patriarca, em vez de Shen-hsiu. Embora o relato de Ching-chueh seja um tanto tendencioso – ele era um discípulo de Shen-hsiu – o seu ensaio ainda é notável por honrar Gunabhadra como o homem que estabeleceu o ensinamento do Zen na China através da sua tradução do Lanka.
Esse status também se reflete na tradição dos comentários. Não obstante a tradução Chinesa mais acessível de Shikshananda, sempre que alguém escreve um comentário sobre o Lankavatara, essa pessoa invariavelmente baseia-se na versão de Gunabhadra. Infelizmente, exceto por três páginas de comentários atribuídos a Aryadeva (de acordo com a maioria dos estudiosos, erroneamente) que critica as doutrinas Hinayanas no Lanka, um sumário de oito páginas de Fa-tsang, e partes de um comentário sobrevivente de outro khotanês contemporâneo de Fa-tsang, nenhum comentário anterior chegou até nós, exceto como material de citação em comentários posteriores. Seriam necessários aproximadamente seiscentos anos para termos os primeiros comentários que foram transmitidos intactos até o presente dia. Hoje em dia temos a sorte de ter mais de vinte para escolher. Mas todos baseados na tradução de Gunabhadra.
Como mencionei, o Lankavatara pode parecer ameaçador, e a tradução de Gunabhadra certamente não é convidativa. Em um prefácio de Su Tung-p’o escrito em 1085 para uma nova edição da tradução de Gunabhadra, o mais famoso poeta daquele momento escreveu, “O significado do Lankavatara é tão sutil e ilusório e a sua linguagem tão sem ornamento e antiquada que o leitor é frequentemente incapaz de lê-lo, muito menos ultrapassar as palavras para alcançar o significado ou superar este para alcançar o seu coração.” O que o tornava tão difícil de ler era que apesar de traduzir o texto para o Chinês, Gunabhadra aparentemente estava preocupado em deturpar o significado e frequentemente recorreu à estratégia de manter a ordem das palavras do Sânscrito, tornando as passagens onde ele fez isso praticamente incompreensíveis. E ainda assim essa é a versão a qual todos os comentários estão baseados, e é aquela que escolhi traduzir. Não tenho certeza como os comentadores anteriores conseguiram entender tanto do texto como eles conseguiram. Sem dúvida eles fizeram o que fiz, ou seja, comparar a tradução de Gunabhadra com aquelas de Bodiruchi e Shikshananda e, quando possível, o Sânscrito.
Quando Suzuki traduziu o Lankavatara para o Inglês oitenta anos atrás, ele decidiu fazer justamente o oposto. Ele baseou-se no texto em Sânscrito revisto preparado por Bunyiu Nanjio em 1923. Como um texto revisto, ele era um composto baseado em meia dúzia de cópias que remetiam a não antes do Séc. XVIII e XIX e que continham centenas de erros. Parecia que essas cópias não eram feitas para serem lidas, como se elas fossem copiadas pelo mérito e baseadas em outras cópias copiadas pelo mérito. Suzuki estava consciente da natureza problemática da revisão do Sânscrito de Nanjio, mas sentiu que ela o aproximava do original. E sempre que não podia entender o Sânscrito ele buscava na tradução chinesa de Shikshananda a ajuda – e menos frequentemente a de Bodiruchi, e ainda mais raramente a de Gunabhadra.
Infelizmente, o texto em Sânscrito à nossa disposição não melhorou. Em 1963, o estudioso indiano P. L. Vaidya produziu uma segunda revisão, mas ela era apenas marginalmente diferente da de Nanjio, apenas porque foi baseada nas mesmas cópias defeituosas. Mais recentemente, o estudioso japonês Gishin Tokiwa produziu um texto em Sânscrito totalmente novo. Mas ele não é uma nova revisão, nem é baseado em nenhuma descoberta nova de cópias em Sânscrito. Em vez disso, ele é o resultado da tradução do texto Chinês de Gunabhadra de volta para o Sânscrito. Devo notar que também existem duas traduções tibetanas. Uma é a tradução feita por Chos-grub por volta de 840 d. C. Mas ela, também, é uma tradução do texto em Chinês de Gunabhadra. A segunda é uma tradução de data desconhecida, por um autor desconhecido baseada no mesmo texto em Sânscrito que temos hoje em dia, assim disseram-me.
Ao considerar qual texto usar na minha própria tradução, realmente não tive escolha. O meu conhecimento do Tibetano é não existente, e o meu conhecimento do Sânscrito equivalente a pouco mais do que a habilidade de consultar dicionários e seguir o que outros já traduziram. Supus poder olhar sobre os ombros de Suzuki e tentar melhorar o que ele havia feito. Mas não vi vantagem nisso, certamente nenhum desafio. E então voltei-me para o Chinês. Sentindo-me um pouco perfeccionista, concluí que a tradução de Bodiruchi continha muitos lustros e digressões. E a de Shikshananda, apesar de ser mais ou menos legível, sofria de muitas simplificações excessivas. Apesar de toda sua sintaxe incomum, a tradução de Gunabhadra, decidi, era a “mãe protetora” dos textos.
Apesar do desafio de entendê-lo, estou surpreso em quão simples ele se tornou uma vez que encontrei os dois fios que unem esse sutra. Basicamente, o ensinamento do Lankavatara é similar à abordagem utilizada pelos mestres Zen recentes que ofereciam aos seus discípulos uma xícara de chá, então pediam para que eles o experimentassem. A xícara de chá nesse caso é o ensinamento do Buda que retraça o universo da nossa consciência, seja ele mundano ou metafísico, de volta para nossa mente. Esta é a xícara de chá a qual esse sutra é vertido.
O Buda expressa esse ensinamento ao descrever o mundo que pensamos como real como sva-citta-dryshya-matra: “nada além de percepções da nossa própria mente.” Com isso ele não quer dizer que a mente vê ou que algo é visto pela mente, pois qualquer sujeito ou objeto seria outra projeção da mente. Ele simplesmente quer dizer que qualquer coisa que vemos, pensamos ou sentimos é nossa própria mente, o que é, é óbvio, uma tautologia. A=A. Mas então qual ensinamento Budista não é uma tautologia?
Tendo colocado essa xícara em nossas mãos, o Buda então pede-nos para que provemos do chá, para experienciarmos a tautologia por nós mesmos. A frase que ele usa para expressar isso é pratyatma gati: “a autorrealização/pessoal/interna,” ou ele qualifica a natureza de tal realização como sva-pratyatma arya-jnana: “a autorrealização do conhecimento do buda.” A importância disso, que é repetido diversas vezes e com palavras similares, não foi esquecida por Suzuki, que notou, “O Lankavatara veio para mostrar que toda a vida Budista não é meramente para ver a verdade, mas vivê-la, experimentando-a.” (Estudos sobre o Lankavatara Sutra, pg. 105)
É claro, o Lanka consiste em mais do que essas duas frases. Mas se vocês as manter em vista, vocês não se distrairão com as atrações da casa de chá do Buda. Escrito em uma linguagem que posteriormente tornar-se-ia parte da escola Yogacara do Budismo, o Lanka provê uma visão de como a mente trabalha e como o caminho para o despertar funciona, mas ele usa tais dispositivos para capturar a nossa atenção. Eles não são o ensinamento. Pense no Lankavatara como um chá Zen em uma xícara Yogacara.
O Budismo preocupa-se com o sofrimento, que é o resultado inevitável do desejo. Mas a questão real é o ego, que é a causa do desejo, que é a causa do sofrimento. Nos séculos posteriores ao Nirvana do Buda, a instrução centrou-se em torno de uma tríade de conceitos designados para focar a atenção de tal maneira que a não-existência do ego tornar-se-ia evidente e a liberação do sofrimento seguir-se-ia. Esses incluíam os cinco skandhas (forma, sensibilidade, percepção, memória e consciência), as doze ayatanas (seis poderes e seis domínios da sensibilidade) e os dezoito dhatus (as ayatanas com a adição das seis formas de consciência). Essas eram três visões da mesma coisa: nossa mente. Elas eram simplesmente formas diferentes de dividir qualquer momento dado da consciência em uma matriz gerenciável para demonstrar a qualquer um que quisesse perambular por essas matrizes que elas continham o universo da nossa consciência, o seu interior e exterior, e ainda assim elas não continham um ego. Essa era sua função: mostrar aos praticantes que o ego não existia.
Enquanto esses três esquemas lidam com o problema de um ego, eles não ajudam a explicar como nos tornamos apegados a um ego em primeiro lugar e como vamos do apego ao desapego e assim à liberação. Assim sendo, a esses foram adicionados mais três esquemas, que ocupam um papel muito maior no Lankavatara do que o trio anterior. Os três novos esquemas são aqueles dos cinco darmas, os três modos da realidade e as oito formas da consciência.
Os cinco darmas dividem nosso mundo em nome, aparência, projeção, conhecimento correto e talidade; os três modos da realidade fazem o mesmo com a realidade imaginada, a realidade dependente e a realidade perfeita; e as oito formas da consciência incluem as cinco formas da consciência sensorial, a consciência conceitual, a vontade ou autoconsciência, e a oitava forma, conhecida como consciência repositório, onde as sementes dos nossos pensamentos anteriores, feitos e palavras e são armazenadas, e a partir de onde elas brotam e crescem.
Assim como o trio anterior de conceitos, esses foram projetados para explicar a nossa consciência sem um ego. Mas eles têm a vantagem de também fornecer a visão de como os nossos mundos da auto-delusão e auto-liberação acontecem, como o despertar funciona, como vamos da projeção do nome e da aparência para o conhecimento correto da talidade, como vamos da realidade imaginada para uma realidade perfeita, como transformamos a nossa consciência óctupla na budidade. É mais provável que esses esquemas desenvolveram-se separadamente entre os diferentes grupos de praticantes, mas eles eventualmente tornaram-se a marca do Budismo Yogacara, com a sua ênfase em retraçar tudo de volta para a mente, de volta para a xícara de chá. O Lankavatara opera dentro desse universo do discurso Yogacara, e ele igualmente coloca aquela xícara de chá em nossas mãos. Mas então o Lanka coloca todos esses esquemas de lado com a finalidade de exortar-nos a provar o chá por nós mesmos.
O Buda diz a Mahamati para abandonar todas as concepções, todos os darmas, os três modos de realidade, as oito formas da consciência, o tatagata-garbha, abandonar tudo. O conselho de Buda no Lankavatara é para que tomemos aquela xícara de chá e não nos preocupemos com onde essa experiência se encaixa em alguma matriz anteriormente construída da mente. É claro, beber o chá da mente não ocorre no espaço, nem ocorre no meio da multidão. Por isso, o Buda oferece esse antigo conselho: “Se os bodisatvas desejam entender o reino da projeção no qual o que capta e o que é captado não são nada além de percepções de suas próprias mentes, eles devem evitar os relacionamentos sociais e dormir e cultivar a disciplina da atenção plena durante os três períodos da noite.” (Capítulo 2, X) Com xícara de chá ou não, ninguém disse que seria fácil. Não era fácil quando o sutra foi escrito, e não ficou nem um pouco mais fácil. O mundo moderno é tão cheio de distrações. Por que alguém gostaria de meditar quando pode assistir TV, jogar vídeo game ou surfar na internet? Apenas sentar-se com uma xícara de chá pode ser tão difícil.
A primeira vez que ouvi falar do Lanka foi durante os anos setenta quando eu estava vivendo no Monastério Haiming nas colinas ao sul de Taipei. O abade falou sobre o Lanka como se ele fosse o Santo Graal do Zen. O seu nome era Wu-ming, e além de ser o diretor da Associação Budista de Taiwan, ele também liderava a linhagem Linchi (Rinzai) da ilha. Tomei a sua estima pela significância do Lanka seriamente, e comprei uma cópia da tradução de Gunabhadra em uma das minhas viagens semanais para a cidade. O sutra era impenetrável. Então, em uma viagem subsequente, comprei uma cópia da tradução de Suzuki para o Inglês. Pensei que se eu lesse em Inglês e Chinês lado a lado eu não teria problema em entender o texto. Eu estava errado. Nenhuma língua ajudava. Eu abandonei e fui fazer outras coisas, a saber, os resquícios literários de Montanha Fria, Casa de Pedra e Bodidarma, e o legado da tradição dos eremitas chineses.
Nos trinta e cinco anos desde então, periodicamente considerei tentar dar ao Lanka uma nova tentativa. Mas adquiri o hábito de traduzir textos Budistas para entendê-los – como minha prática do Darma – e não estava convencido que o Lanka seria um desses textos. Então dez anos atrás, em uma visita a Sanmin Shuchu, a minha livraria favorita em Taipei, cruzei com um volume (extraído do Hsutsangching, volume 1, págs. 445-681) que comparava todas as três traduções chinesas do Lanka parágrafo a parágrafo. Era justamente o tipo de encorajamento que eu precisava. Agora que tinha todas as três versões chinesas na minha frente, fiz o que era natural e produzi uma versão composta, escolhendo uma linha de uma tradução e outra linha de outra. O resultado, contudo, estava longe do satisfatório. Mesmo que estivesse colocando palavras na página, eu ainda não entendia o que elas significavam.
Enquanto eu estava decidindo como proceder, a oportunidade de trabalhar no Sutra do Coração apresentou-se. Foi um alívio, como correr descalço depois de usar botas militares. Ademais, depois de terminar o Sutra do Coração, voltei a trabalhar no Lanka, dessa vez baseando a minha tradução na de Shikshananda, cujo Chinês era o mais simples de entender. Mas antes de ir muito longe, fui resgatado outra vez, dessa vez pelo Sutra da Plataforma. Mais uma vez, foi uma escolha fácil. E quando concluí o Plataforma, não tive problema em encontrar alguma outra coisa para trabalhar. Eu estava evitando o Lanka.
Então um dia na primavera de 2009, enquanto falava sobre projetos possíveis com Jack Shoemaker, o editor desse livro, minha necessidade premente de apresentar um livro e seu desejo de publicar uma tradução do Lankavatara encaixaram-se em um contrato para um livro com um prazo final de dois anos. Pergunto-me quantos livros nasceram dessa combinação. Alguns, imagino. E então, vários meses depois, abasteci-me com vários comentários chineses na minha próxima viagem a Taiwan e comecei a trabalhar naquele verão.
Desde então, trabalhei nessa tradução com poucas interrupções e realmente comecei a gostar do Lanka. Até mesmo comecei a gostar da tradução de Gunabhadra. Uma vez que me acostumei com a sua sintaxe, a maior parte não foi tão difícil. Mas a maior parte não quer dizer tudo. Às vezes senti que tentava ver através de um muro. Por isso, eu seria negligente se não reconhecesse a minha gratidão àqueles que tornaram possível para mim entender o que pensei que não era possível entender.
Duvido que eu teria realizado esse trabalho em primeiro lugar se não fosse o trabalho pioneiro de D. T. Suzuki nesse sutra – não apenas a sua tradução do texto, mas também o seu Estudo sobre o Lankavatara Sutra e seu Índice do Lankavatara Sutra. Esses três foram de enorme ajuda. Também estou em dívida com os monges cujos comentários forneceram-me insights sobre o significado, assim como o vocabulário do texto: os monges da dinastia Ming T’ung-jun, Tseng-Feng-yi e Te-ch’ing e os monges do Séc. XX T’ai-hsu e Yin-shun. Sem a ajuda deles, eu estaria perdido.
Além da tradução do texto do sutra, também adicionei sumários, comentários e notas, muitos dos quais graças aos monges cujos comentários fiei-me. Também anotei todas as frases ou linhas as quais preferi as traduções de Bodiruchi ou Shikshananda sobre a de Gunabhadra. Embora eu já tenha declarado as minhas razões por não utilizar o próprio texto em Sânscrito, nas notas frequentemente listei os termos chaves em Sânscrito (infelizmente, sem os diacríticos usuais) para dar aos leitores uma oportunidade de explorar seu escopo mais amplo de significado por si mesmos.
Finalmente, essa tradução e seus comentários também se beneficiaram imensuravelmente da generosidade de dois dos mais respeitados estudiosos do Budismo do mundo, Dan Lusthaus e Paul Harrison, ambos colocaram de lado seus próprios trabalhos para ler os primeiros rascunhos. Eles sugeriram numerosas correções e melhorias, e a minha dívida com eles é suficientemente grande, que terei que esperar por alguma existência futura para equilibrar as contas.
Antes de passar os resultados ao leitor, devo notar que decidi não incluir a coleção de versos que foram anexados ao Lankavatara em algum momento entre a tradução de Gunabhadra (443), na qual estão ausentes, e a de Bodiruchi (513), na qual estão presentes. Foi-lhe dado o título de Sagathakam (Coleção de Versos) por Nanjio e incluem 884 poemas de quatro linhas, entre os quais 205 também aparecem no corpo principal do Lanka. Se eles emprestaram um do outro ou se compartilharam de uma fonte comum é impossível dizer. De qualquer forma, o Sagathakam lê-se como uma seleção destinada a acompanhar a instrução oral. E na falta de tais instruções ou de um contexto para o entendimento dos poemas, decidi renunciar ao desafio que uma tradução implicaria. Ainda assim, alguns poemas são valiosos e felizmente eles já foram traduzidos na íntegra como parte da tradução de Suzuki desse sutra.
Considerando o meu próprio trabalho sobre o Lanka, nunca pensei que pudesse chegar tão longe – ao ponto onde eu estaria escrevendo um prefácio. Devo admitir, estou feliz por estar transmitindo-o. E naturalmente eu desejaria ter feito um trabalho melhor. Mas lembro-me de um comentário que Nan Huai-chin fez-me durante um jantar de cinco horas em sua casa em Shanghai cinco anos atrás. O monge leigo do Zen recontou quando ele era jovem e perguntou a Nuvem Vazia por que o velho mestre continuava a reparar os monastérios Zen mas nunca os terminava. Nuvem Vazia deu uma tapa atrás da cabeça de seu jovem discípulo e disse, “Espertalhão. Se eu os terminasse, o que a próxima geração faria?” De fato, deixei muito trabalho para os que virão. Enquanto isso, acho que é hora daquela xícara de chá.
RED PINE
1 DE ABRIL, 2011
PORTO TOWNSEND, WASHINGTON
Replique