Quem me dera eu fosse
a carteira branca da escola
onde debruçou-se a criança
de outrora, hoje senhora,
mestra das horas, foice,
do tempo transcorrido,
professora de antanho
do sonho, dos gritos
Quem me dera eu fosse
nas revoluções incontidas
a anti-barricada nas linhas
Clamando às vozes foscas
Quem me dera ser
o ornamento, relicário
da joia, campanário
Que enfeita o prazer
Quem me dera ser
a aurora a entreter,
a grama orvalhada
a tulipa encantada
a anti-mortalidade
a lira que toca à saudade.
Eu gostaria de ser a fissão nuclear
para o núcleo duro quebrar
só para depois fundar
na fusão de um olhar
o drama a embalar
essa noite secular,
Eu gostaria de ser as praias,
as areias, as aldeias, os índios,
clareiras nas nossas selvas
desordeiras
Ai se eu fosse,
as roletas de cassinos febris
virando como um juiz
um futuro rico, verniz.
Quem me dera eu fosse
o olhar do cão abandonado
perdido e amedrontado
Mas que chora por ser doce
Se eu pudesse ter sido o carteiro
que trouxe no bojo um segredo
o selo entre dois mundos
buraco fundo, um bueiro,
profunda mente em queda
do morro de uma pedra
Eu escalaria o Everest
da dúvida, e traria a
música do tempo,
tem poeira,
temporal,
Que reina no cotidiano,
dos relógios levianos,
e as horas que se movem,
na surdez dos que correm,
Ai se eu fosse a quimera
o olho de tandera
a visão além do alcance
de seu sonho infante
Se eu nu pudesse
mostrar um corpo que envelhece
e não esconder-me em mudas vestes
eu apareceria gritando,
ai se eu pudesse,
Se eu transmutasse alquimista
o ouro de uma vista
em esperança, preguiça,
atmosfera sambista
Eu seria o beija-flor que baila
fertilizando as nuvens ralas
da névoa que nos abraça
Eu seria o tom que diz
à humanidade toda
o quanto o coração quis
unir os tendões de Aquiles
os membros amarrar
e juntos congregar
o instante exaltar
como seta, lugar,
o futuro derramar
entornar,
na ternura evocar
a gratidão
de contemplar
de só estar,
gastando o luar
e esperando
na manhã seguinte
apenas o despertar.
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