A erupção da palavra, ou a chuva fina da inspiração transmutada milagrosamente em traços, requer condições climáticas perfeitas. Ouvir os gritinhos da pluralidade de eros, o elo perdido entre a biologia e a palavra, vozes latentes que esperam por breves momentos de explosão, ao bater de uma brisa numa tarde qualquer. A experiência traduzida num texto, fenômeno de destilação, separação cuidadosa, impossível desatar dos nós do fogo primordial. Porque o texto – coitado – com suas parcas duas dimensões, não pode conter a espiral avassaladora que se apresenta a nós num luar vivido em boa companhia.
Inocentes os seres humanos! Esforçados em talhar e inscrever esse grande amálgama, se esquecem de constatar a própria escultura milimetrada que são. Esquecem da oportunidade absurda que brota do olhar de primavera de outrem, que flui incontido na paixão que extravasa sem rumo, num escorrer musical com muitas morais de histórias. Pois quão absurdos são os números se comparados com o nascimento de um ser humano? Quão fugaz a análise econômica perante o toque! Tanta vida enclausurada em “ses”, “então”. Distantes do sentir, compelidos a produzir uma língua arquitetada, em criar sistemas coerentes por demais, em obter cargos públicos, abandonamos a capacidade de orvalhar as coisas com a gota de nós, e secar ao amanhecer.
Um outro vocabulário então? Uma saída pela tangente da palavra? A sombra humana que passa alimentada pelo jornal das oito? Desmanchar o casulo do conforto! Descer do pedestal do luxo! A palavra, sempre ela, penetrando nas possíveis revoluções e as minando por dentro. A palavra é o bizarro tirânico que nos assombra enquanto dormimos e sonhamos o real. Extinguir a palavra para respirar! Seus desígnios de modernidade, de alfabetização, de inscrição do que não é passível de redação tornaram-se instrumentos antigos, alicates enferrujados.
Que grande contradição encontra-se na foz. O rio da palavra, do texto, é um rio grande por demais, pronto para afogar qualquer um que deseja cair em suas águas e bebê-las todas. Não é possível abarcar todo o acervo linguístico cunhado com tanto carinho por milênios – edifício mais frágil que castelos de cartas de baralhos. O mar infinito onde o rio da palavra deságua é a humanidade melhorada, uma atualização de nós mesmos, pronta para sentir e menos apta a dizer, agindo em prol da paz universal, não redigindo direitos humanos. Será que não é possível conduzir-nos pelo sentimento? O Século XXI deve nos trazer de presente, o que os outros séculos – aqueles velhotes – só nos prometeram: a primazia do Belo. A beleza é a síntese universal dos contrários, mistura exótica num ponto de perfeição que colore o vir-a-ser com a tinta da esperança. Enquanto a palavra continuar com seu império imemorial, a beleza iluminará nossas casas apenas em lampejos de vaga-lumes, mediada por livros que não são os nossos. Para abrir a torneira mental do belo, banhar-se em suas águas que não sufocam, é necessário esquecer os mandamentos a ferro e fogo da palavra.
Dar voz ao orgânico que nos sustém, às mitocôndrias e os axônios que não calculam e não gritam por socorro quando alguém colapsa. Explodir a granada da palavra e recolher seus cacos, sílabas que compõem as mais belas manhãs outonais. Esqueçamos dos livros nas estantes, porque esse exército de moribundos precisa descansar, enquanto fundimos juntos o amanhã na forja da beleza, não com letras tortas que mancham de ineficácia tudo aquilo que se move, mas com o braço que desce a enxada e estende a flor.
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