Técnica, Prometeu, Epimeteu e a Instituição da Temporalidade – Uma Leitura de Bernard Stiegler

          Nos dias de hoje a importância da técnica é transversal a todos os âmbitos da cultura. O desenvolvimento da eletricidade, por exemplo, há pouco mais de 100 anos, provocou extraordinárias mudanças na maneira da humanidade lidar com seu entorno. Acompanharemos as análises de Bernard Stiegler no livro La Technique et le temps, 1: La faute d´Epimétheé sobre a história do desenvolvimento da técnica. É claro que omitiremos muitos dos desenvolvimentos do livro para nos focarmos em um núcleo que julgamos de maior relevância. Além disso, propomo-nos desvendar alguns dos pontos de contato e os de distância, entre a filosofia e a tecnologia.

          Em um primeiro momento (I) faremos uma introdução geral sobre aquilo que conhecemos hoje como técnica. Para isso resgataremos suas origens históricas, na Grécia, e acompanharemos sua evolução conceitual até a obra de Martin Heidegger, passando rapidamente por Simondon, Leroi-Gourhan e Gille. Em seguida (II) veremos como a interpretação do mito de Prometeu e Epimeteu, que consta na obra Protágoras, de Platão, pode contribuir para uma analítica da temporalidade e seus desdobramentos no mundo hodierno. Em terceiro lugar (III), acompanharemos as análises de Heidegger sobre a estrutura técnica a priori montada (Gestell) em cada época histórica e a relação entre um algo e um quem.  A questão da temporalidade, no âmbito da técnica, se torna fundamental desde a implantação da chamada técnica moderna através do advento da máquina, que impõe uma velocidade alucinante na marcha da evolução da técnica. A questão, também, é de saber se podemos prever e/ou controlar o sentido da evolução da técnica.

          Em seguida, nos dedicaremos muito brevemente, em tecer algumas considerações sobre as duas outras obras de Bernard Stiegler, que completam a trilogia de Técnica e Tempo. Em La Technique et le temps, 2: Désorientation (IV)veremos como a memória, ela mesma, se torna um produto à serviço da técnica, a memória industrializa-se, o que causa uma desorientação considerável nos esforços humanos de acompanhar o desenvolvimento técnico.  Já em La Technique et le temps, 3. Le temps du cinéma et la question du mal-être veremos (V) como o cinema enreda a consciência humana, que se entrega ao chamado projetivo do vídeo. Ao se entregar ao fascínio do vídeo vive-se um tempo alienado, um tempo que sempre é de outrem. Stiegler pensa que isso pode ser um instrumento de dominação de escala global com proporções inigualáveis.

          Em último lugar, (VI) procuramos dar a conhecer a Associação Internacional, criada em 2005, por Bernard Stiegler, chamada Ars Industrialis, que pensa que o mundo hodierno está totalmente submisso às chamadas tecnologias do espírito, que controlariam todas as formas de comportamento, os desejos e as próprias existências de todas as pessoas. Para se libertar dessas imposições é necessário pensar uma ecologia industrial do espírito. Pensamos nessa última parte como uma aplicação empírica das indagações filosóficas dos primeiros cinco tópicos desse trabalho, em um modelo irmanado ao de um diagnóstico da contemporaneidade levado a cabo pelo que se convencionou chamar Teoria Crítica da sociedade.

            I. Considerações históricas sobre a técnica

          No mundo grego clássico o termo teknè soava como algo que, nascido duma determinada experiência, poderia ser generalizado e ensinado como um conjunto de conhecimentos. Ademais, teknè também remetia para um know-how, um saber realizável através de certas etapas. Sabemos da recusa de Platão de enquadrar a filosofia no esquema determinado de uma teknè.  De fato, houve um certo desespero platônico em fundar a filosofia como uma teknè, uma arte, acima de todas as outras. A filosofia, aos olhos de Platão, permite o acesso à realidade essencial das coisas. Seu estudo garantiria a verdade, a epistéme, ao contrário da doxa, das meras opiniões que reinavam na prática política ateniense.

            Aristóteles definiu, na Física, os objetos técnicos como aqueles que, contrariamente aos entes vivos, não podem-se auto-causar ou auto-gerar. Ou seja, estes remetem para entes que “não têm a fonte de sua auto-produção em si mesmos”[1]. Segundo o prisma aristotélico, o objeto da teknè é sempre um meio, necessário para a execução de um determinado fim. Vislumbramos brotar das análises de Aristóteles duas regiões às quais correspondem dinâmicas diferentes: de um lado os seres vivos, reunidos e estudados pela biologia, e, por outro lado a mecânica. Os objetos técnicos, mesmo que se assemelhem a algumas características inerentes aos seres vivos, estão, desde Aristóteles, sobre a alçada da mecânica.

            A teoria da técnica aristotélica, como veremos, frutificará até Marx e Engels. Ao apontar para a dialética intrínseca à mão e ao instrumento, esses autores borraram a linha que limitava o aparato técnico e o ente dotado de vida. Podemos constatar, também, que, na modernidade, conforme as relações de trabalho foram sofrendo importantes mudanças operadas pelo uso de novos instrumentos, cada vez mais a técnica foi se tornando objeto de interesse da filosofia.

          Migrando nosso olhar da Grécia aristotélica para a modernidade, Simondon, por exemplo, caracterizou a cultura dos dias de hoje como um mecanismo de defesa contra a realidade técnica, o que institui a oposição total entre máquina e ser humano. De fato, a máquina impõe uma revolução total na história da técnica. A técnica moderna criará um sistema de dominação da natureza nunca antes visto na história, colocando o homem em uma relação hesitante entre um ministro e intérprete da natureza, por um lado, e um mero fantoche da máquina por outro. Esse processo é tão radical que o ser humano vai se tornando, cada vez mais, um meio do sistema técnico, não a sua finalidade. Renegado ao papel de coadjuvante, o fator humano tende, com o advento da robotização e da inteligência artificial, a ceder completamente seu papel no processo técnico à natureza maquínica.

          Simondon pensa que a realidade técnica da vida humana antecipa todos os tipos de dinâmicas sociais, a mecanologia se espalha por todos os âmbitos sociais. Simondon aponta que as duas categorias às quais o progresso técnico pode ser melhor visto são: adaptabilidade e indeterminação.  A individualização perde seu componente humano, passando a referir-se completamente à natureza maquínica. Há uma dinâmica auto-geradora entre as instâncias do objeto, de um lado, e o sistema na qual esse objeto está imerso, de outro. Nesse processo, ao homem cabe um papel totalmente passivo, na qual apenas lê as pistas apontadas e segue os passos do progresso técnico. A técnica detém, em Simondon, características de organismos e sistemas vivos, em que a evolução se dá por um princípio inerente ao próprio sistema, que guia o processo e regula as tendências do progresso técnico. Qualquer antecipação humana do futuro técnico está sempre estruturado pelos aparatos técnicos disponíveis em determinado tempo histórico, fator que enubla a compreensão e antecipação humanas.

          Leroi-Gourhan cria a categoria de tendências técnicas, de um ponto de vista antropológico. É possível, em um dado momento histórico, a separação do estado da técnica de fato e as tendências das técnicas futuras. Enquanto os fatos técnicos podem ser contingentes, limitados e precários, as tendências técnicas são uma forma de universalidade. O advento da técnica impõe-se sobre a evolução biológica, o que determina o destino humano de maneira fundamental. Leroi-Gourhan também propôs a oposição entre meio interior e meio exterior. A evolução humana foi em busca de compreender em que sentido o meio exterior influenciava o meio interior. Porém, a técnica invade o meio exterior que fica saturado pelas determinações técnicas. No limite, as diferenciações entre meio exterior e meio interior serão completamente borradas.

          Gille pensou na programação da técnica, em suas características sistemáticas. O sistema técnico tem forte propensão de fechamento em sua própria esfera de atuação, de impermeabilização perante os outros sistemas. Ademais, o que assistimos hoje é o advento da técnica assumindo características sistemáticas que englobam os quatro cantos do mundo, o que gera uma interdependência ao nível mundial em relação à técnica. Além disso, algo que ocorra de forma totalmente matematizável e prevista no sistema técnico pode gerar desordens consideráveis no sistema econômico e social, por exemplo. A questão, nesse caso, é de saber se o fator humano pode contornar as adversidades impostas pelas tendências do sistema técnico, e, no limite, assumir o controle histórico desse sistema. Gille também diz que a sociedade de hoje interage com o sistema técnico através do consumo, e esse é transversal em todos os lugares do mundo.

          Gille também pensou nos sistemas técnicos como unitários e passíveis de evolução no tempo. A estabilização da evolução técnica, por um certo período de tempo, é resultado de uma tecnologia agregadora. A evolução dos sistemas técnicos, além de agregar maior complexidade, aumenta a solidariedade interna entre os diversos elementos combinados. A mundialização da técnica, que Heidegger chamará de Gestell, implica uma exploração sistemática e global de recursos com crescente interdependência entre os sistemas econômicos, políticos, etc.

          Husserl, analisando a aritmetização da geometria em curso em sua época, apontou para um estágio em que os significados e a própria intencionalidade aos poucos se desvanecem. O método científico que advém da matematização é, no limite, metafísico e blindado contra quaisquer ideias que não sirvam para a busca de certos resultados exatos. O cenário que a absoluta matematização do real fornece é o de um empobrecimento generalizado da consciência histórica, da memória e o do esquecimento da importância da filosofia. Tal diagnóstico podemos encontrar muito bem delineado na A Crise das Ciências Europe ias e a Fenomenologia Transcendental, de Husserl.

            Heidegger vê na armação (Gestell) uma característica fundamental da história do Ser, sempre amparado pela razão. De alguma forma, para Heidegger, a tecnização encapsula a história do Ser, que torna-se, então, história da Técnica. Por isso, sofrermos de uma falta de memória, memória esta que forneceria outras visões de seres humanos para além do ser técnico. O Dasein heideggeriano é perpassado pela técnica, é instrumentalidade equipada com o destemido e vangloriado poder de calcular. Somente a crítica da armação técnica da modernidade pode desvelar por trás do seu véu metafísico a pergunta fundamental: a da origem e sentido do Ser.

            A hipostasia da mathesis universalis, proposta por Leibniz, Descartes e outros, encoraja o estabelecimento de um sujeito que deve fazer o papel de ministro e intérprete da natureza. A era técnica moderna, em Heidegger, se caracteriza pela metafísica na qual a subjetividade torna-se totalmente objetiva. Com efeito, o entendimento heideggeriano da natureza da técnica, que perpassa de forma fundamental toda sua produção, é ambivalente. A técnica aparece “simultaneamente como o último obstáculo para e a última possibilidade do pensamento.”[2] A Gestell é a realização última da metafísica que dota de caráter global a técnica, por um lado, e é o conceito onde ser e tempo se co-apropriam em um existir (es gibt), o que libera a determinação metafísica do tempo.

            Nesse sentido, Heidegger analisa em “A Questão da Técnica” a possibilidade de afastamento da técnica da determinação metafísica. Aqui, diz Heidegger, considerar a técnica como instrumento, meio para se alcançar certos fins, como fazia Aristóteles, não basta. A técnica tem, também, um caráter de poiésis e, por isso, gera um desvelamento de novos horizontes do ser, é alétheia. Na modernidade dificilmente a técnica atinge a poiésis e a alétheia porque institui um sujeito que violenta continuamente a natureza, submetendo-a ao cálculo, movimento que se pode acompanhar através da Gestell, conceito no qual se encontram natureza e homem “entrelaçados” através da estrutura do cálculo.

            Como tentativa de escapar do impasse esboçado por Heidegger, Jürgen Habermas, por exemplo, introduz o conceito de ação comunicativa em “Técnica e Ciência como “Ideologia””. Conceito que será fundamental para o ulterior desenvolvimento da obra de Habermas, a ação comunicativa é uma capacidade da razão para além da lógica de meios e fins da técnica. Esta atividade com vistas a certos fins, altamente racionalizante, está atrelada ao progresso científico. Muitos autores a viram como um instrumento de dominação com densidade histórica e multifacetado, para citar alguns: Adorno, Marcuse, Weber. Temos que ter em mente, nesse ponto, a Aufklärung às avessas diagnosticada na Dialética do Iluminismo.

          A ação comunicativa faz referência a uma certa comunidade de indivíduos que engendram uma série de normas de forma intersubjetiva. A história humana, à luz das análises de Habermas, seria um desenvolvimento dialético entre  a razão comunicativa e a razão racional-proposital. As sociedades modernas tendem a atrofiar a discussão pública, a ação comunicativa, em favor da racionalidade técnica com vistas a objetivos exatos. Além de assistirmos a um fechamento sistêmico da racionalidade técnica, como um modelo cibernético, por exemplo, há, também, uma dano à linguagem, um lapso na socialização, uma dificuldade de individualização e de intersubjetividade.

          Essa tecnização da linguagem é algo de não-natural, de perverso, tanto em Heidegger quanto em Habermas. O complexo problema que se coloca, hoje em dia, é o de compreender como a opacidade cada vez maior dos diferentes meandros da cultura, como a alta especialização da ciência, permitem ou entravam a descrição do atual processo de tecnização. Das novas tecnologias que nascem a cada dia, pode-se notar o entrelaçamento da esfera temporal que rapidamente torna obsoletas profissões inteiras, máquinas, relações de trabalho, etc. O que clama, cada vez mais, a uma contínua adaptação dos seres humanos a esse meio técnico. A técnica e a tecnologia se destacam da cultura para alcançar um grau de autonomização tal, que a partir desse ponto, toda a cultura torna-se responsiva aos desenvolvimentos tecnológicos. Mais do que isso, o desenvolvimento técnico é sensivelmente mais rápido do que o desenvolvimento da cultura, o que gera consequências de grande escopo para uma análise filósofica da técnica. A barreira do tempo está sempre sendo quebrada pela tecnologia. É exatamente esse ponto, qual seja, o da temporalidade, que teremos que investigar mais a fundo.

          Mais uma vez as ideias de Heidegger terão muita relevância. O Dasein é existência, factualidade, e, por isso e também, temporalidade. O Dasein entra em um mundo que sempre o precedeu em sua factualidade, um mundo que já estava lá. A temporalidade do Dasein estabelece uma relação de antevisão perante esse mundo, o que, ao prevê-lo e antecipá-lo, o Dasein está a frente do tempo do mundo e, por isso, a frente de si mesmo.

          A questão que fica, transversal a todas as outras, é a da invenção da técnica, ou do homem. A técnica foi realmente inventada pelos homens? Ou, por outro lado, os homens são inventos da técnica? Se respondida adequadamente podemos compreender que parte faz papel de quem no processo, o agente ativo, e que parte é o algo, passivo. Heidegger hesita entre uma divergência total entre o quem (existência) e o algo (presença a disposição da mão). Em um certo momento Heidegger diz que qualquer ser contém os dois âmbitos, o que torna problemática a posterior arquitetura de suas análises.

          As análises que se seguirão buscarão dar conta, brevemente, da analítica existencial heideggeriana em relação à técnica tendo em vista os mitos gregos dos irmãos Prometeu e Epimeteu. Nesse sentido o mito dará insights importantes para entendermos as diversas e complexas figuras de temporalização que estarão em jogo. Enquanto Prometeu simbolizará um avanço no tempo, uma antecipação, Epimeteu remeterá para uma falta, um esquecimento, um não-comprometimento e uma distração.

II. Prometeu, Epimeteu e a Temporalidade

          Compreender a dinâmica que se estabelece entre a tecnologia, que move as diversas eras técnicas e as possibilidades de antecipações do futuro é uma tarefa complexa que exige o elencar de categorias filosóficas. A questão assume tamanha radicalidade que, de fato, a tecnicidade constitui de forma fundamental a temporalidade. A temporalidade de um alguém torna-se sempre atravessada pela materialidade do algo. Nossa época histórica assiste a esse fenômeno de forma privilegiada e, ao mesmo tempo, hesitante.

           Se considerarmos que, em qualquer época histórica, há uma determinada estrutura técnica já dada, como Heidegger apontava através do conceito de Gestell, então, qualquer tentativa de uma fenomenologia da temporalidade deve relevar a memória dos outros momentos da evolução da técnica e isso será um suporte para as indagações e estruturas do presente. Esse tipo de análise exige que se faça um estudo das possibilidades de antecipações técnicas. Caminho este que foi apenas apontado por Heidegger.

          Acompanharemos o percurso de Stiegler, que buscará compreender a união primordial e dialética entre algumas características encontradas na construção mitológica de Prometeu, como deus da técnica (prósthesis), Prometeu como o deus da antecipação, Prometeu aquele que representa o receio da morte e a própria ignorância da morte, com a significação de Epimeteu, que representa a não-memória, o esquecimento. Ademais, busca-se alcançar uma visão da epimetéia, ou a experiência que se alcança através dos erros do passado, irmanada com o que hoje nomeamos reflexividade. Ou seja, o que estará em causa é a interconexão entre técnica, antecipação, finitude, memória/esquecimento e finalmente subjetividade.

          Em uma acepção que se tornou clássica, teknè é a violência do homem contra a natureza, homem que vê a si mesmo como um deus. O entendimento grego de teknè, que se solidificou no vocabulário comum, afirma Stiegler, é bem diferente dessa primeira interpretação. Teknè, na Grécia anterior ao advento da metafísica, na Grécia trágica, era entendida circunscrita ao horizonte da mortalidade. A teknè se posicionava no meio de um homem que se via como imortal, de um lado, e o homem animalizado que esquece da própria morte, de outro.

          Epimeteu não representa somente aquele que esquece. Ele também é esquecido. A construção mitológica de Epimeteu aponta para o esquecimento da própria metafísica, no limite, para o esquecimento do pensamento. Epimeteu é o retorno após o falhar de alguma experiência. Göethe, em Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister explora à exaustão a figura epimetéia, fazendo mesmo o mote do livro: “Aparar os cornos ao bater a cabeça”. Veremos como a figura de Prometeu só faz sentido através de seu complemento, Epimeteu.

          No mito platônico Protágoras, há uma narração do mito de Prometeu e de Epimeteu, que podemos reproduzir muito brevemente: Em um tempo em que só havia deuses, Epimeteu é incumbido da tarefa de dotar vários seres de aparatos técnicos que os tornarão mais velozes, mais fortes, etc. Ao final da tarefa, Epimeteu se esquece dos humanos, dotando somente as bestas com o acervo disponível de habilidades. Prometeu chega para inspecionar o trabalho de Epimeteu e percebe que os homens estavam nus, fracos, sem armas, etc. Prometeu então rouba de Hephaestus e Athena a habilidade das artes, juntamente com o fogo e os delega aos homens. O mito termina dizendo que só a partir daí o homem pode articular a fala aos nomes e criar casas, buscar alimento, fazer roupas, etc.

          Do mito podemos vislumbrar que a falta de Epimeteu permitirá aos homens a sabedoria da teknè. Filhos de uma falta (o esquecimento de Epimeteu) e de um roubo (de Prometeu) os humanos nascem dessa dupla falta. Porém todo o cenário é estruturado em torno da possibilidade dos homens, com o poder da tèkne roubada, se assemelharem ou não dos deuses. Por isso, dissemos, o entendimento grego de epimetéia girar em torno da mortalidade e da possibilidade última de se esquecer da mortalidade. Nesse sentido, a técnica será o meio pelo qual os homens, mesmo que decaídos do Panteão dos deuses, participam da divindade através da dupla falta originária. Nessa antropogonia, ao mesmo tempo que se aponta para a imortalidade dos deuses, vê-se a mortalidade dos homens. A interpretação geral de Stiegler do mito grego: a tecnicidade inaugura a mortalidade.

          Daí que na linguagem corrente grega prometéia remeter diretamente à mortalidade. A partir da queda dos homens, para sempre foi estabelecida uma disputa entre os dois reinos: mortais e imortais. E essa disputa (eris) se espalhará por todos os meandros. Prometeu sofrerá a ira de Zeus, assim como os homens lutarão entre si em verdadeiras guerras parricidas. Desde então os homens devem suportar o fardo do trabalho, o que necessariamente pede pelo uso de instrumentos, até o dia em que a morte cobrará sua dívida.

          Na invenção da pró-thesis, daquilo que é posto em frente, a humanidade vê o seu próprio cerne, a possibilidade de ser fora de si mesma. Esse ser fora de si, que cria o aparato técnico é produto de uma inventividade dirigida pelo logos? ou a produção mesma engendra o logos como um subproduto? Stiegler argumenta que toda a ordem engendrada pelo logos é produto da técnica, ocorrem através da técnica. A política e a religião, que são embasadas no logos, são também perpassadas pela falta originária do ser técnico. O homem necessita conjurar novos instrumentos técnicos devido a sua dupla falta original. A incompletude move a busca insaciável da humanidade pela técnica.

          Como castigo a Prometeu, Zeus ordena a Hephaestus moldar uma mulher em terra, Pandora. Esta abrirá o jarro que contém todo o mal que assolará a humanidade. O jarro continha elpis que, entre muitas traduções, pode indicar esperança, expectativa, antecipação e, até mesmo temporalidade. A elpis, como disse Jean-Pierre Vernant guarda uma incerteza do que realmente a humanidade pode esperar. Em termos heideggerianos, a elpis aponta para a incerteza do futuro, contínua relação com o indeterminado. A antecipação da elpis aponta para o entrelaçamento entre prometéia e epimetéia, relação com um futuro incerto que cada ser humano deve enfrentar.

          Depois da falta de Epimeteu o futuro humano enseja à mortalidade. Seres para a morte, que criam seres fora de si mesmos, que esperam pelo futuro incerto. Seres que têm esperança e por isso, medo. Todas essas determinações são frutos da técnica, que instaura a temporalidade e a possibilidade de auto-destruição, sempre à mão dos que detém o poder bélico. A onipresença dos aparatos técnicos, uma faca, a televisão, o computador, o dinheiro, os óculos, etc, causam um certa cegueira, um certo esquecimento. Cegueira e esquecimento que são marcas indeléveis de Epimeteu. A epimetéia indica a falibilidade da existência humana, a falibilidade dos aparatos técnicos criados pelos humanos, impõe a questão da mortalidade à raça humana.

          Enquanto prometéia é a antecipação do futuro, prudência e, ao mesmo tempo, uma inquietude essencial, epimetéia quer dizer do esquecimento, do idiota, do atraso, do impensado. O passado sempre será um ato de esquecimento e uma falha, que marcará todo o pensamento. “Prometeu e Epimeteu, inseparáveis, formam juntos a reflexão particular aos mortais que partilham do espólio divino: é uma reflexão como êxtase, no tempo, ou seja, na mortalidade, a qual é antecipação e diferença; é reflexão como tempo e tempo como reflexão: em antecipação no lado de Prometeu como também como atraso do lado de Epimeteu – nunca em paz, que é um privilégio exclusivo aos seres imortais.”[3]

          Na obra de Heidegger é possível acompanhar a relação entre a tradição de um lado e a técnica moderna de outro, assim como a oposição, que se mantém nos moldes platônicos, entre logos e teknè. Sobre a questão da herança, mais uma vez a figura introduzida pela epimetéia parece ser útil, porque diz sobre o esquecimento da tradição, dos erros interpretativos do passados, ao mesmo tempo em que ocorre algumas acumulações de conhecimento – características inerentes à condição humana. A própria etimologia de epi-metéia a relaciona com o verbo grego manthano, que quer dizer apreender, estudar, ensinar a si mesmo. Ademais a raiz do verbo também ressoa em mathesis, que, nas análises de Heidegger é a “fundamental pressuposição do conhecimento das coisas.”[4] No limite, então, epimetéia refere-se à herança e à tradição. É o que já está no mundo, aquando Heidegger diz que o Dasein é lançado em um mundo. O radical epi, explica Stiegler, diz do caráter de casualidade e de artificialidade do constructo.

          O Dasein é a própria articulação entre os âmbitos de um quem e de um algo, já dizia Heidegger n´O Conceito de Tempo. O passado em que qualquer Dasein é imerso está sempre lá, é o que dota o caráter de facticidade do em torno. Esse Dasein é, de forma intrínseca, seu próprio passado através do dispositivo da herança. É impossível fugir da herança histórica legada por um tempo, essa marca transversalmente todos os projetos contemporâneos com as faltas, erros e conseguimentos do passado. A grande questão aberta por Heidegger, é a de saber qual a composição desse algo que sempre é anterior a qualquer Dasein, esse algo que já está lá, que é essencialmente técnico. Disso antevê-se um tempo tecnológico, no qual o desenvolvimento da técnica ditaria, de fato, a passagem do tempo existencial. Em outras palavras, o tempo do algo ditaria o tempo de um alguém.

            O Dasein contém uma peculiaridade: a de saber de seu fim, fim este que se mantém indeterminado. Por isso que o Dasein pode “esquecer-se” do agora para viver o passado ou antecipar e projetar o futuro – características fundamentais de Prometeu e Epimeteu. Essa repetição do passado permite o acesso ao arcabouço do que se encontra já lá, a estrutura do mundo anterior a qualquer Dasein?

            E qual o papel da temporalidade? Heidegger diz: “O tempo é Dasein[5] Nas intrincadas relações entre a herança do passado e a antecipação do futuro o tempo se coloca perante a humanidade. Entretanto o tempo é determinado de acordo com o estado tecno-lógico de cada época que reconfigura a rede do que é herdado e possibilita novos arranjos de projetos de futuro. A tecnologia de cada época histórica torna-se a rede em que a temporalidade é encapsulada. A tecnologia determina quais elementos do passado sobreviverão e qual o caminho a ser trilhado no futuro. O que está em jogo é a dialética entre esquecimento/lembrança e antecipação. O que já está lá que Heidegger apenas indicou constitui a própria temporalidade, sempre influenciada pela estrutura técnica de cada época histórica.

            III. Heidegger, o que já está lá, e a relação entre um quem e um algo.

          Ser no mundo é em si mesmo um problema porque a maioria dos seres humanos sabem que estão imersos em um horizonte de não-predestinação. Stiegler, com Heidegger, propõe que a um quem da história corresponde um determinado algo que já estaria lá, a disposição do quem, um determinado horizonte técnico sempre disponível ao fator humano, em qualquer época histórica.

          Heidegger, em um primeiro momento, postula uma distinção, como dissemos, que é fundamental para toda a estrutura de Ser e Tempo, do quem que age no processo histórico (Dasein) e do algo que sofre a ação (Handlung – o ser que está a disposição da mão). Ao longo de Ser e Tempo Heidegger hesitará e chegará mesmo a considerar que todo ser participa tanto do quem quanto do algo. O Dasein é o ser ôntico privilegiado para se acessar à questão ontológica primordial, intui Heidegger. Aproximar-se do Dasein é analisar, primeiramente, sua cotidianidade. Porém esta cotidianidade não está eivada pela estrutura do que está já lá no mundo, pela armação técnica? Heidegger anteviu esse problema e a “resolve” nesses termos: o Dasein será um passado, porém que, de fato, não lhe pertence. Stiegler lerá isso à luz do conceito derridiano de différance.

            A tradição ou, em termos heideggerianos, o que já está lá, é o que, simultaneamente, colocará resistências para um Dasein alcançar aquilo que realmente se é, seu próprio projeto e, por outro lado, liberará essa realização. Porque a transmissão da tradição envolve o esquecimento do passado, sempre. Por isso, se faz tão necessário para Heidegger, que, para se liberar uma nova ontologia, a estrutura das antigas sejam destruídas, esquecidas. O que está em causa, evidentemente, é o problema da origem. A origem guarda toda a indeterminação possível, ao mesmo tempo que fornece todo o legado histórico de cada época, também sendo passível de esquecimento, de neutralização. Para um certo Dasein, a determinação histórica montada em seu tempo histórico é um a priori. Ou seja, o destino do Dasein está sempre determinado pelo algo, pelo sistema técnico de um tempo. A cotidianidade de um Dasein é, então, essa confusão entre pura facticidade e determinação técnica. Heidegger aponta que ser-no-mundo é sempre uma forma de preocupação e o Dasein se mostra no cuidar; análise esta que ressoa à prometéia, como antecipação e preocupação com o futuro.

            No texto O Conceito de Tempo, de Heidegger, está contida a hipótese estruturante do livro de Bernard Stiegler, até onde podemos ver. Ali, Heidegger propõe um tempo tecnológico, ou seja, um tempo do algo, que interpela continuamente e, no limite, constitui o tempo de um quem. Mais uma vez a questão recai sobre a epimetéia, a tradição como conhecimento. A hipótese que estruturará a leitura de Stiegler é que o acesso à tradição e ao conhecimento se dá através da tecnologia. A tecnologia é geradora e transmissora do conhecimento.

            O relógio é o tipo privilegiado de algo que aproxima o tempo do quem que se interroga pela temporalidade. Que tipo de aparato técnico é o relógio? Qual o tempo que um relógio mensura? O sistema cíclico do relógio só faz sentido para um Dasein, um quem. Porém Heidegger dirige suas análises para o agora. Qual a estrutura do agora, da hora que é marcada no exato momento que dirijo meu olhar a um relógio? A questão nos remete novamente ao Dasein. Porém há uma dificuldade de apreendê-lo como temporalidade porque o Dasein está velado em suas manifestações: no Ser-no-Mundo, na cotidianidade, no Eu sou, na tradição, etc. O Dasein nunca pode ser apreendido em sua totalidade. O Dasein não é um algo porém tem acesso privilegiado ao Ser. Para o ponto em que estamos, a leitura de Stiegler de Heidegger é totalmente devedora de Jacques Derrida. O Dasein é indeterminável, é contínua différance. O Dasein é o próprio vir-a-ser, que denuncia a sua falta, a sua incompletude. A morte encerra o caráter de ser-para-a-morte do Dasein, final esse que precede à possibilidade do Dasein completar-se, impossibilitando-o.

            Há uma certeza da morte, porém esta permanece totalmente indeterminada. Da mesma forma, a pergunta pelo Dasein tem como resposta um conhecimento que sabe que não-conhece. Conhece a própria indeterminação da estrutura encerrada pelo Dasein. Diz Heidegger: O “Dasein, como sempre perpetuamente meu, sabe da sua própria morte até quando espera conhecer nada sobre ela. O que é isso de ter a própria morte em cada caso? É o Dasein antecipando o seu passado, para uma extrema possibilidade de si-mesmo que está ante ele certamente de maneira indeterminada.”[6] A dialética entre esperança e medo, entre epimetéia e prometéia está contida aqui, o que faz ver a différance. Por não ser pré-destinado, o futuro do Dasein permanece eternamente velado. O ser do Dasein é um retirar-se, um velar-se, o que revela a sua estrutura de falta originária.

            Em resumo, o tempo e por conseguinte o Dasein apresentam-se como, essencialmente, uma carência de tempo, um velamento da estrutura do Dasein. Onde podemos situar a individuação, então, em Heidegger? Em primeiro lugar a temporalidade de um Dasein quer dizer de uma atualidade não-idêntica. No sentido em que, como dissemos anteriormente, o Dasein é o tempo, que não é nada além do que já está lá, é possível dizer que o tempo é um princípio de individuação. “O Dasein é o seu passado, é suas possibilidades em correr à frente do seu passado. Nesse correr a frente eu sou autenticamente tempo, eu tenho tempo. Na medida em que o tempo é, em cada caso, meu, há muitos tempos. O tempo em si mesmo é sem sentido. O tempo é temporal. Se o tempo é entendido nesse sentido como Dasein, então de fato se torna claro o que a asserção tradicional sobre o tempo quis dizer quando disse que o tempo é o próprio principium individuationis.”[7]

            O Dasein é fora de si mesmo, é temporal. Seu passado não lhe pertence porém o passado é tudo o que ele pode ser. O Dasein necessita projetar-se a si mesmo para fora, a frente de si mesmo na forma de pró-tesis. A forma em que o Dasein acessa o passado e antecipa o futuro é, também, através das próteses. Assim como a escrita é uma suspensão do juízo (épokhé). Nessa suspensão a escrita realoca o passado, antecipa o futuro na “duração” do agora do presente. A escrita mostra a dialética entre prometéia e epimetéia, expondo ao mesmo tempo que velando a différance.

            IV. Um breve olhar sobre La Technique et le temps, 2: Désorientation

            A rapidez dos processos ubíquos de evolução da técnica marca a desorientação do ser humano que busca apreender conceitualmente tal marcha tresloucada. No seu primeiro livro, Bernard Stiegler argumentou que essa desorientação que acompanha pari passu o desenvolvimento da arte é de natureza original. O sistema técnico abarca as outras manifestações de uma época, enclausurando-as em seu próprio vir-a-ser. Ao mesmo tempo que a estrutura técnica de cada época está montada, apontando para o passado, a técnica é o centro da inovação histórica, é o locus inventivo que anuncia o futuro. Nesse sentido, falar de humanidade sob qualquer ângulo é resvalar na constância da técnica, como determinação necessária do mundo-da-vida dos humanos.

            A desorientação causada pela ubiquidade da técnica revela a falta de posicionalidades fixas no mundo, entre o aqui e o ali, o passado e o futuro, o público e o privado, o profano e o sagrado, etc. Ademais, acompanhamos alarmados a independência do desenvolvimento técnico perante a cultura humana, processo em que não podemos, nem através do cálculo, prever para onde aponta. A nossa época assistiu ao nascimento dos mass media e das tecnologias de informação que hoje perpassam qualquer horizonte do olhar humano. Como um próximo passo, as tecnologias de informação manipulam todos os meandros culturais disponíveis em uma época histórica, interferindo de maneira total nos processos de individuação de cada ser humano. A vida humana se torna programática, a memória é submetida aos desejos da indústria controladora das tecnologias de informação.

            Heidegger deu um passo além da fenomenologia de Husserl, esta atrelada e vigilante com as determinações impostas pelo presente, ao postular que o que é herdado é uma característica fundamental do presente e da própria temporalidade. Na sociedade hodierna, assistimos a uma tecnização e industrialização da memória, uma das principais causas da desorientação, argumentará Stiegler.

            Stiegler identificará fases diferentes nas quais a memória vai se tornando cada mais enredada pela técnica. A instituição pública do texto, através do livro, fez nascer uma nova época, a época Ortográfica. Por séculos o texto escrito foi o grande paradigma no qual todas as crenças eram fundamentadas. O poder de moldar os intelectos, de guiar as massas, que o livro encabeçou, foi sendo somente gradualmente entendido com toda sua força pelo devir histórico. Em seguida, Stiegler buscará analisar a gênese da desorientação, na qual o processo de dominação e o caráter programático da industrialização atinge, de maneira basilar, todo o aparato da memória humana. Com as mídias virtuais, com a interatividade, a estrutura clássica dos eventos se desmantela, e com ela, a própria cultura embasada na ortografia. Essa memória forjada pela grande industria da informação torna-se um objeto político, guiando de maneira precisa e controlada as ações dos seres humanos no mundo.

            V. Um breve olhar sobre La Technique et le temps, 3. Le temps du cinéma et la question du mal-être

            A decadência da escrita e da cultura Ortográfica e a consequente emergência dos novos meios de informação transformam imensamente a maneira em que os mitos, os arquétipos e o próprio passado são recontados. Todas as narrativas sofrem de um contínuo processo de “remediação” ou seja, se propagam pelos mais diversos meios como, por exemplo, blog, filme, áudio, etc. até alcançarem o usuário final. Mas, entre todos os meios, talvez o que gera maior poder projetivo, na qual o espectador se sente como que totalmente imerso na narrativa, é aquele que atinge a junção de imagem e som, alcançado primeiramente pelo cinema, e que se popularizou através da televisão.  Tal controle do processo técnico e da articulação simbólica operada pelo vídeo pode dar um poder de manipulação política da humanidade para um pequeno grupo, e de fato dá, em detrimento à grande massa que cai passiva diante do surpreendente efeito projetivo.

            A grande força da ilusão cinematográfica se apoia sobre a fotografia. A fotografia permite um fluxo direto do passado ao presente, é de uma estranheza considerável, aterrorizadora. Aliado a isso, o cinema ainda enxerta o som, mais um registro do âmbito da memória, que corrobora de forma concreta os vínculos sutis entre passado e presente. Há total coincidência entre o tempo (sempre já passado e presente) do filme e o da consciência do espectador que o assiste. O fascínio pelo cinema, pelo fluxo imagético e sonoro, advém do considerável estranhamento causado por esse novo dispositivo técnico. Como nas análise de Husserl sobre a melodia, que só aparece esvaindo-se, aparece no próprio devir, o filme, ele também, apresenta-se em fluxo, antecipando-se e desvanecendo-se. Algo que nos relembra a dialética implícita de prometéia e epimetéia. O cinema faz ver a relação interrompida entre uma recém-retensão e o presente, por isso, ao mostrar o lapso que nos separa irremediavelmente do passado, atenta para o próprio modo de ser consciente e vivo.

            Stiegler está particularmente preocupado com a tamanha perfeição do processo mimético operado pelo cinema, que borraria para sempre a tênue linha divisória entre ficção e realidade, virtual e real, que poderia tomar uma escala global de dominação de uns, os detentores do aparato e conhecimentos técnicos, sobre os que não os possuem. O filme sempre convida para um tipo de temporalidade que nunca é a minha, o filme é a concretização máxima de um tempo dum outro instituído, que interpela para sempre a mim. Stiegler nos alerta para a possibilidade de alcançarmos um estágio de uma plena Industrial Cultural, na acepção que Adorno e Horkheimer deram a esses termos, que domina todos os meandros de nossa cultura, que instala uma determinada temporalidade e, o que vemos evidentemente, que toma as rédeas do processo de individuação. Nos dias de hoje, a televisão faz o papel de cinema, tornando ubíqua a divulgação do vídeo, com seus poderes emancipatórios surpreendentes e seu potente vetor reificante. Como vemos a questão, essa nova indústria cultural aponta para um cenário ambivalente, que permite a emancipação e, também, a reificação, tornando-se dependente do conteúdo do vídeo em questão.

VI. A Associação Ars Industrialis

            O estado da contemporaneidade histórica aos olhos da Associação Ars Industrialis (arsindustrialis.org) é o da inteira submissão da vida do espírito aos imperativos da economia, que monopoliza a informação e a cultura, gerando o que é denominado por tecnologias do espírito. Estas tecnologias do espírito, nos dias de hoje, visam controlar e moldar hegemonicamente as vidas dos indivíduos e de sociedades inteiras. A sociedade industrial que inicia-se no século XIX, perpassa o século XX e alcança o século XXI gera uma quantidade absurda de resíduos tóxicos, que se tornaram obsoletos e que necessitam dar lugar a uma nova organização industrial.

            A Ars Industrialis chama esse novo sistema econômico de “economia de contribuição”. Com influências nítidas da obra de Amartya Sen, visa-se que os resíduos gerados sejam diversificados e que tenham novamente entrada no sistema econômico, sem causar danos ambientais ou humanos. A economia de contribuição é o próximo modelo da indústria de informação, que domina todas as outras formas industriais. A Internet é o exemplo máximo onde não há mais produtores de um lado e consumidores de outro. As redes digitais abrem espaço para todos os tipos de contribuintes, que desenvolvem e compartilham tecnologias, conforme um modelo de associação. Esse caminho aberto pela Internet fornece novos horizontes na luta contra a dependência cultural, contra a manipulação de informação, etc. Por outro lado, as redes de informação e as redes sociais têm forte poder de vício e de hiper-consumo, o que torna as novas tecnologias verdadeiros pharmakos gregos, com poder de cura e de morte. Nesse sentido, toda a técnica é um pharmako, que detém em potencialidade a natureza benéfica e a maléfica.

            A sociedade de consumo hegemônica, que assistimos em pleno funcionamento no mundo de hoje, pode estar dando sinais de que está atingindo o seu próprio limite. O problema é que ao mesmo tempo que identifica-nos como consumidores, por um lado, temos a consciência que o modelo de sociedade de consumo se tornou tóxica e não-promissora, por outro. Há um paradoxo em buscar de dentro da sociedade de consumo um modelo que ultrapasse essa realidade. Temos um senso de responsabilidade em mãos que aponta para um reinventar o modo de viver tradicional, rumo a um novo modelo que revolucione a vida na Terra. Devemos escapar da proletarização e consequente diminuição do saber-viver que a máquina introduz nas relações humanas, como apontou Marx.

            O novo modelo econômico, com influência das redes digitais cooperativas, pode engendrar uma nova forma de acumulação de conhecimento humano, um hiper-aprendizado. É necessária a implementação de políticas estatais nos mais variados níveis para incentivar o desenvolvimento desse novo modelo. A ciência deve pensar novos modelos para substituir as antigas relações econômicas. A educação, a escola e a universidade devem ensinar como escapar da proletarização, dando oportunidade do surgimento de uma nova rede de ensino. Uma política fiscal que rearranje e possibilite novos postos de trabalhos e novos vínculos trabalhistas. Uma política cultural que capacite os indivíduos e proporcione novas formas de saber-viver, etc.

            Alcançar um novo paradigma técnico que fuja das reificações hodiernas, contribuindo para a emancipação, essa é a missão da Ars Industrialis. Ademais, contribuir para o nascimento de uma nova consciência coletiva. Para isso, a cultura deve se armar contra a ignorância e, o que é mais importante, a ignorância que eiva a própria cultura.

BIBLIOGRAFIA

STIEGLER, Bernard. Technics and Time, 1. The Fault of Epimetheus, 1998, Stanford University Press, Stanford.

STIEGLER, Bernard. Technics and Time, 2. Disorientation, (1996 Original | 2009 Tradução Inglês), Stanford University Press, Stanford.

STIEGLER, Bernard. La Técnica y el Tiempo, 3. El tiempo del cine y la cuestión del malestar, , 2001, Cultura Livre.


[1] Aristotle, Physics, Book 2, I:329.

[2] STIEGLER, Bernard. Technics and Time, 1. The Fault of Epimetheus, p. 7.

[3] STIEGLER, Bernard. Technics and Time, 1. The Fault of Epimetheus, p. 202.

[4] Idem Ibidem, p. 206.

[5] HEIDEGGER, Martin apud Idem Ibidem, p. 251.

[6] HEIDEGGER, Martin apud Idem Ibidem, p. 217.

[7] Idem Ibidem, p. 229.

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