Passagem escolhida: “Assim ele enxergava no esclarecimento tanto o movimento universal do espírito soberano, do qual se sentia o realizador último, quanto a potência hostil à vida, “nihilista”.”
Resumo: argumentaremos nesse trabalho que Max Horkheimer e Theodor Adorno corroboram a crítica nietzschiana à razão, e, por conseguinte, à civilização, porém ao instituir a vida como vontade de poder, Nietzsche vai contra as pretensões dos autores da Dialética do Esclarecimento de suplantar a crueldade entre os homens.
A fim de reproduzir tal impasse, faremos (I) um recorte da crítica nietzschiana à verdade e a razão. Para isso, necessitaremos passar pelas noções de perspectivismo e vontade de poder. A seguir, (II) veremos em que medida Nietzsche é fundamental para o projeto de Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento, e, ao mesmo tempo, é visto como um continuador do niilismo e do esclarecimento que teve pretensões de superar. Se conseguirmos reproduzir a ambiguidade de Nietzsche aos olhos de Adorno e Horkheimer, procuramos (III) nas noções de liberal-ironista de Richard Rorty, filósofo estadunidense contemporâneo, uma saída pós-metafísica que mantém no mesmo sujeito as pretensões de perfeição individual, encontradas em Nietzsche, juntamente com as pretensões de justiça social, levadas a cabo por Adorno e Horkheimer.
(I)
Iniciaremos buscando na filosofia de Friedrich Nietzsche do período intermediário e de maturidade a substituição da noção de verdade pela de valor. Nietzsche leu a história da filosofia como uma tentativa quase inocente dos filósofos de lançarem-se além de si mesmos em busca de um ideal de verdade. A noção de valor destrói a dicotomia tradicional e excludente de verdade-falsidade. Se construirmos um segmento de reta em que em um dos extremos esteja a verdade, no outro a falsidade, então os valores podiam ser todos os pontos da reta, porém a verdade e a falsidade só poderiam ser alcançadas nos dois limites diametralmente opostos. Com isso Nietzsche “implode” a noção de verdade clássica e, no seu lugar, instaura um perspectivismo. Com este, Nietzsche pretende fugir dos problemas metafísicos que viu necessariamente na vontade de verdade. Até aqui não temos em mãos o critério nietzschiano que engendra uma hierarquia entre esses valores. Veremos que este será o papel da vontade de poder.
Para levar a cabo essa tarefa, Nietzsche deve criticar os elementos sub-reptícios em qualquer vontade de verdade, ou seja: a razão, a linguagem, a metafísica. Nietzsche nos alerta que esses elementos podem ter validade no âmbito restrito do indivíduo, porém não devem ser hipostasiados e terem pretensões de validade universal. Por exemplo, a distinção entre mundo sensível e mundo inteligível poderia sem nenhum problema servir às pretensões do ser humano Platão, porém, ao apresentá-los como verdades universais, há uma confusão entre o contingencial e o universal, e então, um falseamento. Se não confundirmos esses campos, nos manteremos fiéis ao perspectivismo. Nesse sentido, Nietzsche pode ser lido como um filósofo da linguagem que a todo o momento nos alerta sobre a sua própria contingência.
Ao perspectivismo soma-se à vontade de poder que seria o grande “motor” da vida. A vida, para Nietzsche, é busca por mais poder. Se assim é, a diferenciação qualitativa entre os seres humanos é, no limite, natural. A busca por mais poder é o critério para julgar entre os inúmeros valores instaurados pelo perspectivismo. Se, naturalmente, a vida busca mais poder, qualquer coisa que a enfraqueça é antinatural.
Se para Nietzsche a vida entendida como vontade de poder é um critério para julgar então é possível distinguir entre duas tipologias de homens: fortes e fracos. Aqueles dizem sim à dominação e a esta vida a todo o momento, amam o destino por mais cruel que este possa parecer (amor fati), não procuram além-mundos para doarem suas forças, acreditam que não há uma Moral encravada no mundo, mas sim sempre interpretações humanas sobre os fatos do mundo. Os fracos remam contra a correnteza da vida, veem os edifícios metafísicos da filosofia tradicional como esperanças proféticas por dias melhores, creem numa Moralidade essencial que deve ser seguida fielmente. Porém Nietzsche viu que os fracos, ao longo da história e contra a lógica intrínseca à vida, estão ganhando a luta contra os fortes.
Na Genealogia da Moral busca justificar como os fracos puderam impor sua vontade de poder aos fortes com um estudo filológico e genético sobre os termos “bom” e “mal”, presentes no vocabulário do forte, e “bom” e “mau” presentes no vocabulário do fraco. Os primeiros, “bom e “mal”, não são julgamentos morais, indicam níveis diferentes de eficiência, por exemplo, se alguém conserta um liquidificador e outra pessoa não o faz, diz-se da primeira que ela é boa, e da segunda que é má reparadora de liquidificadores. Já os termos “bom” e “mau” julgam moralmente. Os fracos aceitam uma moral como essência do real e, a partir daí, olham para todos que não a pressupõem e julgam-os “maus”. Este foi um grande instrumento de dominação porém, para Nietzsche, quem controlou esse processo histórico de dominação foram os fracos. Nietzsche afirma-nos que esse julgamento moral dos fracos, numa lógica de dominação, foi tão eficiente ao longo da história que, através da moral, houve um domínio do fraco sobre o forte, contrariando a própria vida.
Então Nietzsche percebe que todas as manifestações à sua volta buscam des-hierarquizar a vida, que é em si mesma, hierarquia. Esse será o Zeitdiagnose (diagnóstico do tempo) que Nietzsche denominou de niilismo. A vontade de verdade é um sintoma do niilismo, assim como a moral, o cristianismo, a democracia e o materialismo histórico no qual estão imersos Adorno e Horkheimer.
A Genealogia da Moral é emblemática para argumentarmos que Nietzsche vê na linguagem e na razão instrumentos a serviço da dominação. Esse insight será desenvolvido e elevado ao limite na Dialética do Esclarecimento, como veremos a seguir.
(II)
Como já dissemos, a lição nietzschiana do entrelaçamento entre razão e dominação foi fundamental para a Dialética do Esclarecimento. Adorno e Horkheimer vão até às origens da cultura ocidental para mostrar que “o mito já é esclarecimento e o esclarecimento acaba por reverter à mitologia”1. O astuto Ulisses, da Odisseia de Homero, em busca da autoconservação, ou seja, para não se deixar seduzir pelo canto fatal das sereias, se amarra no mastro e tapa os ouvidos de seus remadores com cera. Com isso, domina os outros e se auto-domina. Adorno e Horkheimer veem em Ulisses a proto-história do burguês. Acreditam que é inevitável para a dominação da natureza e para a autoconservação a dominação de outros seres humanos, tornando-os coisas.
Adorno e Horkheimer pensam que essa lógica de dominação da natureza, que intrinsecamente leva à dominação dos seres humanos uns aos outros é a grande história da civilização ocidental. Nietzsche com certeza é um autor peculiar dentro dessa história. Como já mostramos, Nietzsche mostra o quanto a razão, a linguagem e o discurso foram usados pelos seres humanos, até então, numa lógica de dominação (no jargão de Nietzsche) e de esclarecimento (no jargão de Adorno e Horkheimer). Porém, na leitura de Adorno e Horkheimer, ao instituir a vida como luta por mais poder Nietzsche assume o esclarecimento e a dominação que criticou. Adorno e Horkheimer veem a vontade de poder nietzschiana como uma vontade de verdade engendrada de dentro de uma filosofia que buscou destruir as vontades de verdade. Daí a ambiguidade de Nietzsche para os autores da Dialética do Esclarecimento.
Nota-se claramente que para Nietzsche de um lado, e Adorno e Horkheimer de outro, há diferentes ideias de emancipação. Para Nietzsche a emancipação ocorre no ato de dizer “sim” a esta vida, que é sofrimento, que é dominação; Nietzsche chama isso de amor fati. Para os autores da Dialética do Esclarecimento, a emancipação levaria ao amor entre os homens que só uma sociedade sem divisões de classes pode proporcionar.
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1 – Adorno, Theodor e Horkheimer, Max, Dialética do Esclarecimento, Rio de Janeiro, Zahar, 1985, p.15.
Para Nietzsche o apaziguamento da luta por mais poder da vida é antinatural. Quaisquer autores que pretendem destituir a dominação entre os homens, como Adorno e Horkheimer, serão para Nietzsche, niilistas. Este, para Adorno e Horkheimer seria um mero continuador do esclarecimento que, apesar de ter criticado seus mecanismos por um lado, reafirmou sua lógica, por outro.
(III)
Adentraremos a filosofia de Richard Rorty (1931-2007), mais especificamente em Contingency, Irony and Solidarity, para mostrarmos que em uma cultura pós-metafísica, a perspectiva de Horkheimer e Adorno de diminuição da crueldade entre os homens não é excludente com a perspectiva nietzschiana de manutenção desta. Rorty pensa que os escritos de cada um desses autores ensejam posturas e pretensões literárias diferentes. Enquanto Adorno e Horkheimer quiseram nos ensinar que o sofrimento humano poderia e deveria ser abrandado, Nietzsche nos ensinou como buscarmos a perfeição individual. Para abarcar as duas pretensões, Rorty divide epistemologicamente o eu, o self, em dois. O lado ironista e o lado liberal.
A parte ironista do self seria aquela em busca da perfeição individual, nesse âmbito, podemos afirmar, se aceita o método nietzschiano, mas não o critério da vida. Cada um deve ter liberdade para tecer suas peculiaridades individuais e engendrar o critério valorativo. Filósofos como Nietzsche, Heidegger e Kierkegaard nos são bons exemplos de autonomia, de auto-criação. Para os propósitos de perfeição individual, o social não é considerado. Não é necessário para a auto-criação a justiça social.
A parte liberal do self se preocupa a todo o momento com a sociedade a sua volta. Aqui, o self deve prestar atenção em tudo que pode humilhar outros seres humanos. Como liberais autores como Marx, Horkheimer, Adorno, Habermas e Rawls são selfs exemplares. Eles tentam nos mostrar como “fazer nossas instituições e práticas mais justas e menos cruéis”2.
Na cultura ideal buscada por Rorty, essas posições (ironista e liberal) podem se encontrar no mesmo self, porém não podem ser sintetizadas em uma única teoria. Esses liberais-ironistas devem ter claro que a busca por perfeição individual não implica salvar outras pessoas da dor e da humilhação e vice-versa.
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2 – Rorty, Richard, Contingency, Irony and Solidarity, Cambridge University Press, 1989, p. XIV.
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