Kant e o problema da Ding-an-sich

          Método de Exposição

          A questão em torno do “problema da coisa em si” parece percorrer e definir o que é comumente rotulado como Idealismo Alemão. Esta dissertação pretende tratar o tema com certa ousadia. Procuraremos circunscrever a questão passando pela opinião de vários autores que se debruçaram sobre a coisa em si tal como esta fora definidade na Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant. Para essa árdua tarefa tomaremos como livro base o Kant e o Problema da Coisa Em Si no Idealismo Alemão, tese de doutoramento de Juan Adolfo Bonaccini. Sabemos do prejuízo de tal empresa de antemão. Faremos uma exposição dos autores de forma extremamente esquemática e superficial. Porém reconhecemos os pontos positivos. Além de fornecer o panorama do problema podemos vislumbrar as idéias imaginativas, ou seja, as criações de vários homens sobre o mesmo ponto, fundamental para a história da filosofia.

          Não pretendemos, nesse itinerário, concluir a questão da coisa em si. Pelo contrário, ela nos pareceu tão ampla que qualquer posicionamento parece ser ingênuo.

  1. Jacobi: a questão é posta

          Friedrich Heinrich Jacobi foi o inaugurador da querela em torno do conceito de coisa-em-si de Kant. Alguns comentadores vêem uma única crítica de Jacobi sobre Kant. Outros autores vêem no mínimo três: a) Jacobi acusa o Idealismo Transcendental de Kant de conduzir ao solipsismo. b) Jacobi vê no Idealismo Transcendental de Kant que as impressões são causadas por objetos externos, o que invalidaria o sistema. c) Jacobi pensa que a tese da incognoscibilidade da coisa-em-si leva ao ceticismo.

          Como Jacobi talvez seja o mais importante dos autores discutidos nessa dissertação, pois de alguma forma os que depois tratam da questão tomam postura sobre as três críticas de Jacobi a Kant, nos dedicaremos a analisar cada uma dessas críticas.

          I.a) A primeira crítica de Jacobi: O Idealismo Trancendental conduz ao solipsismo

          Jacobi vê que o idealismo transcendental, que fundamenta a Crítica da Razão Pura, não admite nada a não ser representações. Jacobi busca argumentar que Kant quer deixar claro que só temos acesso a representações e tudo no mundo faz parte de uma experiência interna de pensamento, ou seja, tudo é fenômeno. Em Kant lê-se a seguinte passagem:

          “O idealista transcendental (…) pode ser um realista empírico, por conseguinte, como é chamado, um dualista, i.é, pode conceder a existência da matéria sem sair da mera consciência de si e admitir algo mais que a certeza das representações em mim, por conseguinte o cogito, ergo sum. Pois uma vez que ele faz valer essa matéria, e mesmo a sua possibilidade interna meramente para o fenômeno, o qual nada é separado de nossa sensibilidade, a matéria é para ele apenas uma espécie dentre as representações (intuição) que se chamam externas (eine Art Vorstellungen (Anschauung)), não como se se referissem a objetos externos em si mesmo, mas sim porque elas referem percepções ao espaço, no qual reside toda a exterioridade (ausseeinander), embora ele próprio, o espaço, resida em nós. – Já no início nos declaramos a favor deste idealismo trancendental (…)” (Kant, Kritik der Reinen Vernunft (A370))

          Jacobi, ao ler passagens como esta, acusa Kant de ser tão idealista como Berkeley (Tese que agradaria muito a Fichte).

          I.b) A segunda crítica (talvez a mais importante delas) de Jacobi: As impressões são provocadas por objetos externos

          Jacobi lê no texto de Kant que a incognoscibilidade das coisas em si nos enclausura nas nossas próprias representações. Porém, vemos, que Kant:

          “abandona completamente o espírito de seu sistema quando diz que os objetos causam impressões nos sentidos (auf die Sinne machen) provocando desse modo (erregen) sensações e dando lugar (zuwege bringen) às representações”1

          Se o objeto empírico é fenômeno não pode existir fora de nós. Se do objeto transcendental nada podemos conhecer então este não pode ser admitido como causa dos fenômenos, sob a pena de entrarmos em uma contradição lógica. Esta argumentação ficou conhecida como a “tese da afecção”. Das três críticas de Jacobi ao kantismo com certeza foi a mais comentada e criticada. Alguns autores pensam que Kant realmente disse que as coisas em si afetam os sentidos.

          I.c) A terceira crítica de Jacobi: A incognoscibilidade das coisas em si mesmas conduz ao ceticismo

          Se os objetos são fenômenos e não podemos conhecer nada sobre a coisa em si e o modo de afecção, então não podemos discernir sobre as origens de nossos pensamentos. Devemos tomar a atitude pirronista de suspensão dos juízos. Há um relativismo total do qual não encontramos escapatória dentro do kantismo. Diz Jacobi:

          “(…) se percebessem (empfänden) causa e efeito no sentido transcendental e em virtude destas percepções (Empfindungen) pudessemos inferir coisas em si fora de nós e suas relações recíprocas necessárias no sentido transcendental. Mas como dessa forma afundaria todo o idealismo transcendental (…) seu acólito (Bekenner) deve simplesmente se desfazer dessa pressuposição e sequer considerar verossímil (wahrscheinlich) que haja coisas (vorhanden sind) que existem fora de nós, no sentido transcendental, e tenham relações conosco que de algum modo pudéssemos estar em condições de perceber. Tão logo ele achar que isto é verossímil e quiser acreditar nisso, por mínimo que seja, terá que sair do idealismo transcendental e incorrer em contradições verdadeiramente indizíveis (unaussprechliche) consigo mesmo (…)”2

          Jacobi espera sair da problemática kantiana ao pressupor as coisas em si. “As percepções não são então meras representações, mas sua realidade e veracidade deve ser admitida.”3 Veremos que a resolução apresentada pelos próximos autores têm como pano de fundo as três críticas contundentes ao idealismo transcendental apresentadas por Jacobi.

          2. Maimon: uma resolução à luz da matemática

          Salomon Maimon não lê que Kant quis afirmar a existência de objetos externos. Não pensava também que a coisa em si é do âmbito do incognoscível. Maimon vê o recurso kantiano de uma coisa em si ininteligível mutatis mutandis como a criação dos números imaginários na matemática, mais especificamente, na Álgebra. Estes são usados para exprimir a impossibilidade de resolução de um problema. Vislumbra-se que um número qualquer solapa o conjunto dos números reais e disso temos consciência. Para caracterizar essa espécie de hibridismo matemática faz-se uso da noção de número imaginário. Do mesmo modo, a noção de coisa em si aparece como a certeza de que:

          “temos uma consciência clara e plena da forma do conhecimento, enquanto que da matéria temos uma consciência imperfeita e menos clara, o que nos faz pensar em algo que está na consciência sem ter sido produzido por ela.” 4

          Claro que o trabalho de Maimon se estende para vários âmbitos do kantismo. Para nós, se conseguirmos vislumbrar as idéias imaginativas que filósofos de várias vertentes e épocas tiveram sobre a noção de coisa em si, então alcançaremos nosso objetivo.

          3. Schulze: e o ceticismo

          Gottlob Ernst Schulze em certa medida retoma a segunda objeção de Jacobi (I.b) para formular sua crítica ao kantismo. Porém em vez de se posicionar de forma realista (ou seja, pressupondo a existência real de coisas em si), como Jacobi, para tentar escapar do problema Schulze vai pela via cética.

          Diz Schulze, que seria impossível dizer algo:

          “sobre a existência e inexistência de coisas em si e de suas propriedades, ou sobre os limites dos poderes (Kräfte) do conhecimento humano de acordo com princípios universalmente válidos e indiscutivelmente certos.”5

          Deduz-se então, que Schulze suspende o juízo sobre a existência ou não-existência de coisas em si.

          4. Beck: apenas os fenômenos nos afetam

          J. S. Beck foi um dos grandes interlocutores de Kant. As cartas entre os filósofos atestam teses de grande importância no cenário, que tem na questão da coisa em si seu cerne, conhecido por nós como Idealismo Alemão.

          Se considerarmos uma divisão dos autores quanto o problemática da coisa em si parecemos encontrar:

  1. Os que dizem que coisas em si afetam os sentidos (Jacobi, Schutze).
  2. Os que pensam que a coisa em si é uma idéia (de alma, de mundo) para a representação.
  3. Os que pensam que a coisa em si é um conceito negativo e que só os fenômenos nos afetam.

          Beck é o único autor que se alinha com a terceira opção, então a afecção é efeito de um fenômeno, assim como todas as representações têm origem nos fenômenos.

  1. Distinção entre o sentido empírico e o sentido trancendental do conceito de coisa em si: a “two aspect theory”

          Há autores que buscam minimizar o papel do conceito de coisa em si no processo de afecção e outros que pensam que não há qualquer tipo de afecção entre uma coisa em si “exterior” e nossa mente. Outra via de resolução aparece com a teoria do duplo aspecto. Kant parece fornecer uma leitura desse tipo na solução da terceira antinomia da razão pura: sou plenamente livre quando considero o âmbito da coisa em si; e sou totalmente condicionado quando considero o âmbito dos fenômenos.

          Essa interpretação trabalha em dois sentidos [os comentários entre colchetes são nossos]:

          i) o sentido empírico, “na experiência, os objetos são coisas em si que existem e permanecem iguais para todos, e as sensações que provocam em nós (cor, sabor, aroma, etc) são meros fenômenos subjetivos que variam no tempo e de pessoa para pessoa. Ambos são [coisa em si e fenômeno], portanto, de natureza diferente. Uma coisa é a rosa que existe no jardim, e outra a representação que me faço da sua cor ao vê-la, ou o cheiro que sinto.

          Do ponto de vista empírico, portanto, os objetos são coisas que existem em si mesmas e as sensações que provocam em nós são fenômenos subjetivos (modificações dos sentidos)”6

          ii) o sentido transcendental, “porém, o mesmo objeto que existe independentemente de mim só o percebo e conheço enquanto me aparece subjugado às condições da minha sensibilidade e do meu entendimento, razão pela qual pode ser considerado de duas maneiras diversas: como fenômenos objetivo, enquanto é percebido e conhecido sob tais condições, e como coisa em si, enquanto o abstraio das condições que lhe impõe minha mente e me represento existindo em si mesmo independente daquelas condições.”7

          A “two aspect theory” procura salvaguardar Kant:

          a) quando Kant parece dizer que realmente existem coisas em si nos afetando e provocando fenômenos, Kant estaria no ponto de vista empírico.

          b) quando Kant afirma a incognoscibilidade de coisas em si, ou seja, do ponto de vista transcendental submetemos os fenômenos objetivos às categorias do entendimento.

          Entre os autores que se alinham a teoria do aspecto duplo estão: Prauss, Buchdahl e Allison, que infelizmente não farão parte, nesta dissertação, de um estudo mais aprofundado.

        5. A Guisa de Conclusão

          Nosso objetivo foi apresentar um vôo panorâmico pela problemática da coisa em si. Claro que muitos nomes fundamentais ficaram ocultos: Reinhold, Fichte, Schelling, Hegel. Todos tomaram partidos originalmente no que concerne ao conceito de coisa em si de Kant. Não tomamos postura alguma, devido a envergadura do tema. Talvez este possa ser aprofundado em um estudo posterior, no qual, esta dissertação representa apenas o primeiro passo.

1 Bonaccini, Juan Adolfo, Kant e o Problema da coisa em si no Idealismo Alemão, Relume Dumará, 2003, pg. 48

2 Jacobi, Werke, II, , pg. 309-310

3 Idem Ibidem, pg. 51

4 Idem Ibidem, 2003, pg. 77

5 Schulze, Aenesidemus oder über die Fundamente der Von Herrn Prof. Reinhold in Jena gelieterten Elementar-Philosophie, conforme a paginação da primeira edição de 1792, pg. 24

6 Bonaccini, Juan Adolfo, Kant e o Problema da coisa em si no Idealismo Alemão, Relume Dumará, 2003, pg. 225

7 Idem Ibidem, pg. 225

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