A teoria crítica da sociedade, tradição de pensamento iniciada por Horkheimer na esteira de Karl Marx, nos permite pensar inúmeros âmbitos de nossa contemporaneidade cultural. Nos focaremos nesse trabalho sobre a questão do feminismo. Para isso analisaremos algumas questões cruciais: inicialmente discutiremos as democracias diretas e indiretas, a luz de dois importantes intelectuais contemporâneos. Em seguida buscaremos fixar normativamente o que é o reconhecimento e como este foi assimilado desde Hegel até os nossos dias. Neste ponto nos deteremos algumas páginas. Após apresentarmos a noção de reconhecimento, traçaremos um esboço das três “ondas” feministas do século XX para entendermos como Nancy Fraser, com a noção de redistribuição, ampliará o espaço lógico das demandas feministas, anteriormente dominado pelo reconhecimento. Concluiremos com Fraser que há um entrelaçamento entre reconhecimento-redistribuição e que as lutas empreendidas pelo movimento feminista, no complexo cenário de nossas democracias representativas, vêm obtendo ganhos emancipatórios reais.
I. Colocando a questão das democracias diretas ou representativas
Ao nos debruçarmos sobre a imensa literatura que propõe a discussão entre democracia representativa e direta, duas conclusões parecem saltar aos olhos: a primeira argumenta ser impossível a copresença física de todos os concernidos em todas as deliberações que alteram suas vidas. A segunda mostra que a representação não implica necessariamente uma diminuição da participação social nas questões políticas. Tomaremos uma autora e um autor para ampliar essas questões, que parecem ser complementares. Discutiremos o modelo normativo de democracia representativa de Iris Marion Young contido no paper Representação política, identidade e minorias, e recorreremos também a Norberto Bobbio em O Futuro da Democracia. Apesar de virem de duas tradições divergentes, os textos primeiramente afirmam o que já dissemos: a copresença na deliberação implica em um entrave na realização total da democracia direta. Os dois excertos também argumentam que embora a representação seja a única via para a democracia, ela quase sempre não implica uma diminuição da participação pública na esfera da política. Além dessas convergências gerais entre os textos podemos identificar outras. Adentraremos muito esquematicamente em cada um dos textos para destacarmos algumas de suas nuances.
II. A democracia representativa de Iris Marion Young
Iris Marion Young lembra-nos que Rousseau disse que: “A soberania não pode ser representada”1 . A autora também indica que há posições políticas afinadas a Rousseau que acusam a representação de entrave à liberdade e de, necessariamente, implicar em uma reduzida participação popular.
Iris comenta que a maneira tradicional de encarar a democracia direta seria impensável no atual nível de complexidade de nossas democracias. Aquela visão da democracia exigia a copresença física dos deliberantes em um mesmo local e a identidade entre representante e representado. Ora, isso é um disparate hoje. Mesmo que haja dispositivos pontuais de democracia direta como o plebiscito, parece que a democracia passa necessariamente pela representação.
A representação, porém, não pode nunca degenerar em uma desconexão entre os representantes e os representados. Aqui é o ponto central do texto de Iris: A democracia terá mais saúde quanto mais forte estiver o espaço público comunicativo, ou seja, a boa comunicação entre representados/representantes pode “ditar” as diretrizes da ação do representante que de fato presta conta de cada um dos seus atos aos seus eleitores.
O representante carrega então o papel de dois agentes: de delegado, que é responsável pelos interesses de um determinado grupo e do fiduciário, aquele que é autorizado a deliberar livremente após ser eleito por um grupo. Se tudo ocorrer bem, o representante não entravará o processo de participação popular na criação de novas políticas que, de acordo com a vontade soberana de uma assembleia, representarão melhorias diretas na qualidade de vida dos representados.
III. Norberto Bobbio: as duas formas de democracia expandem-se imbricadas
Entre os diversos insights sobre a atual configuração de nossas democracias, Norberto Bobbio apresenta dois pontos que merecem ser destacados, o primeiro diz que:
“[…] os significados históricos de democracia representativa e democracia direta são tantos e de tal ordem que não se pode por os problemas em termos de ou-ou, de escolha forçada entre duas alternativas excludentes, como se existisse apenas uma única democracia representativa possível e apenas uma única democracia direta possível; o problema da passagem de uma a outra somente pode ser posto através de um continuum no qual é difícil dizer onde termina a primeira e onde começa a segunda”2
Aqui vemos uma ampliação do sentido tradicional de democracia direta. Nesse novo cenário uma mesma democracia apresenta ações mediadas e ações diretas. No Brasil podemos destacar o programa de ação participativa, vigente em muitas cidades, onde reúnem-se às associações de moradores para votar questões locais prementes, como a construção de escolas, postos de saúde, etc. Esse é um ótimo exemplo de como há procedimentos de democracia direta dentro do quadro político representativo brasileiro.
Bobbio também afirma que vivenciamos um momento histórico de aumento da democracia, ou seja, em outras palavras, há uma crescente colonização da democracia tradicional sobre os espaços outrora dominados pela hierarquia e pela burocracia.
Apresentadas as posições de Iris Marion Young e a de Norberto Bobbio, relativas às democracias diretas e indiretas, podemos partir para a segunda parte de nosso texto. Na conclusão retomaremos o que foi discutido acima para afirmar que as lutas feministas pressupõem um regime democrático representativo saudável.
Faremos uma breve reconstrução conceitual do termo reconhecimento. Para isso analisaremos esquematicamente a filosofia do direito do Hegel de juventude. Não conseguiremos esse intento sem mostrarmos como Hegel retoma Aristóteles e sua concepção do ser humano como um ser político-comunicativo. Hegel retoma Aristóteles após Thomas Hobbes ter rebaixado o “status” do ser humano aristotélico a níveis nunca antes vistos. (Me apoio, também, na reconstrução do reconhecimento empreendida por Axel Honneth em Lutas por Reconhecimento)
IV. A filosofia política moderna e seu conceito de ser humano.
Desde Aristóteles a concepção fundamental do ser humano como um animal dependente da comunidade política perpassou quase toda a Idade Média até Maquiavel. Este iniciou o “rebaixamento” do ser humano, o que marcaria quase toda a filosofia política moderna. A pergunta dos gregos, “Como é possível o erro?” foi sendo substituída pela pergunta moderna, “Como é possível o acerto?”. O status da humanidade sofreu fortes avarias e a obra de Thomas Hobbes elevou essa tendência ao seu limite. Buscando o modelo das ciências naturais, de Galileu e Descartes, Hobbes apresenta o homem moderno como aquele que luta sagazmente pela autoconservação, e mais, homem é aquele que se empenha “com providência para o seu bem-estar futuro”. É claro que se os homens agem por antecipação, cabe aos mais perspicazes aumentarem seu poder preventivo. Sabemos que Hobbes cunhou um estado hipotético de “natureza” para demonstrar que sem um mecanismo regulador do poder, os homens estariam fadados a lutarem uns contra os outros indefinidamente. Daí a necessidade de um grande poder, um Estado forte, que regulasse o âmbito social e colocasse fim à guerra de todos contra todos. Não queremos nos deter na filosofia política moderna, ela nos será importante para mostrarmos a seguir como Hegel retomará o conceito de luta, porém imprimindo-lhe um enfoque novo.
V. Hegel leitor de Aristóteles.
Cem anos separa Hobbes de Hegel, isso apenas historicamente. No plano das ideias a separação entre eles é maior: Hegel reencontrará o aristotelismo que Hobbes buscou finalmente enterrar. Hegel terá como fundamental o conceito do ser humano como animal social comunicativo, além de ter absorvido, em sua filosofia do direito, o aspecto positivo do comércio ressaltado por Montesquieu e Adam Smith, entre outros. Hegel vê com várias ressalvas o “rebaixamento” do homem levado a cabo pela filosofia política moderna. Sua obra buscará estabelecer teoricamente o que seria uma totalidade ética, cujos interesses humanos universais estivessem em união com os interesses individuais; Hegel, nesse ponto, via as pólis gregas como ótimos exemplos.
O entrelaçamento contínuo entre a socialização e a individualização dos agentes sociais ou o “vir-a-ser da eticidade”3 (pg. 45) busca formar uma sociedade “que encontraria sua coesão orgânica no reconhecimento intersubjetivo da particularidade de todos os indivíduos”4 Para tecer os meios teóricos para essa tarefa, Hegel reinterpretará a doutrina do reconhecimento de Fichte, aliando-lhe a uma torção teórica do conceito de luta de Thomas Hobbes. O que nos interessa aqui é que, assim como Aristóteles, Hegel intui o ser humano imerso na intersubjetividade social em constante contraposição/luta de opiniões que caracteriza um movimento de reconhecimento. E no momento em que um agente vê suas particularidades reconhecidas no outro, um espaço se abre no qual ele pode individualizar-se novamente. Com isso a individualização vê novas e mais complexas exigências conforme o reconhecimento intersubjetivo vai ocorrendo. Nas palavras de Axel Honneth:
“O modelo de Hegel toma seu ponto de partida da tese especulativa segundo a qual a formação do Eu prático está ligada à pressuposição do reconhecimento recíproco entre dois sujeitos: só quando dois indivíduos se veem confirmados em sua autonomia por seu respectivo defrontante, eles podem chegar de maneira complementária a uma compreensão de si mesmos como um Eu autonomamente agente e individual.”5
Não nos interessa, nesse trabalho, adentrar com mais complexidade o texto de Hegel: poderíamos, por exemplo, ver como o que foi dito até aqui vai ser atualizado pelo próprio Hegel na Realphilosophie. Não faremos isso. O que procuramos focar aqui é a definição geral de reconhecimento que cria uma tensão entre a contínua diferenciação dos sujeitos e sua necessidade de reconhecimento intersubjetivo sempre renovada.
Procuramos fixar normativamente o reconhecimento como uma afirmação, pelos agentes sociais, de suas peculiaridades, suas diferenças. A assimilação posterior de Hegel pelos teóricos do reconhecimento contemporâneos, como Axel Honneth e Iris Marion Young, não serão analisadas em seus pormenores. O que deve ficar claro é que estes veem nos movimentos sociais demandas de reconhecimento. Para Honneth, a história é caracterizada por uma contínua luta por reconhecimento.
Reconstruída a retomada do reconhecimento hegeliano pelos teóricos contemporâneos, veremos como Nancy Fraser, com a noção de redistribuição, reduzirá, digamos assim, o “status” do reconhecimento dado por Axel Honneth e Iris Marion Young, que entendem as demandas sociais contemporâneas apenas como problemas de reconhecimento. Para melhor colocar esta questão, primeiramente esboçaremos as três “ondas” do feminismo mundial.
VI. Feminismo: desenvolvimento interno
É possível distinguir os movimentos feministas e suas reivindicações em três épocas: (apoio-me, aqui, em duas fontes: en.wikipedia.org/wiki/Feminism e em Fraser, Políticas feministas na era do reconhecimento: uma abordagem bidimensional da justiça de gênero)
(I) A primeira organização (onda) feminista emerge no final do século XIX, início do XX, e, entre outras reivindicações, a fundamental é o direto do voto. Os ganhos dos movimentos foram intensos: na Inglaterra o Representation of the People Act (1918) garantia o voto às mulheres com mais de trinta anos que tivessem casa. Nos Estados Unidos o Nineteenth Amendment to the United States Constitution (1919) garantia a todas as mulheres o voto. O sufrágio universal aos poucos se espalhou para a maiorias dos países democráticos.
(II) A segunda onda do feminismo (1960-1980) surge enraizada no marxismo e busca refletir sobre a estrutura sexista do poder, dominante em várias partes do mundo.
(III) A terceira onda do feminismo (1990-até nossos dias) busca, entre outras coisas, revitalizar os insights do marxismo (redistribuição) em conjunto com as perspectivas da revolução cultural (reconhecimento) para a promoção da justiça.
Cada uma das ondas do feminismo trouxe ganhos emancipatórios reais às mulheres, porém, a demanda emancipatória mudou ao longo do tempo. Por exemplo, já garantido o sufrágio universal (pela primeira onda), as mulheres da segunda onda puderam ter uma nova agenda, com novas demandas.
A seguir veremos como Nancy Fraser enxerga nas demandas das feministas de sua época não só a busca por reconhecimento, mas também uma ânsia por melhor redistribuição de renda.
VII. Nancy Fraser e a redistribuição.
Consideremos o texto de Nancy Fraser, Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça na era pós-socialista, pois procuramos desenvolver algumas questões fundamentais: mostraremos que, para Nancy Fraser, o conceito de reconhecimento não dá conta das demandas sociais, o que a levará “de volta” à segunda “onda” do feminismo que clamava, na esteira de Marx, por redistribuição econômica. Ao contrário de afirmar as diferenças entre os grupos sociais, Fraser teorizará uma certa desconstrução destas, em um primeiro momento, no que concerne às classes econômicas. Posteriormente a desconstrução pode servir como um procedimento de universalização aplicável a qualquer demanda social. Não nos deteremos aqui na desconstrução.
Tanto Jürgen Habermas no Discurso Filosófico da Modernidade quanto Axel Honneth em seu Teoria Crítica, afirmam que a análise da contemporaneidade levada a cabo por Adorno e Horkheimer na Dialética do Esclarecimento não consegue explicar todos os fenômenos da modernidade cultural. Adorno e Horkheimer foram bem-sucedidos ao mostrarem os entraves à emancipação, porém, ao radicalizarem a crítica, identificaram que não havia sequer uma via aberta para a emancipação.
Nancy Fraser mutatis mutandis irá aplicar o mesmo procedimento só que com a noção de reconhecimento. Fraser alega que os teóricos do reconhecimento, entre eles suas próprias colegas feministas, como Iris Marion Young, levam ao limite as demandas sociais de reconhecimento a tal ponto que esta acaba englobando outras demandas reais, como a redistribuição de renda.
Propõe então, em Políticas feministas na era do reconhecimento: uma abordagem bidimensional da justiça de gênero, que há um entrelaçamento entre as demandas por reconhecimento e as por redistribuição, e que as medidas que tentam sanar os déficits no reconhecimento não implicam necessariamente em uma melhora na redistribuição, e vice-versa. Nas palavras de Fraser:
“[…] gênero emerge como uma categoria bidimensional, que contém tanto uma face política e econômica quanto uma face discursivo-cultural – a primeira trazendo consigo o âmbito da redistribuição e a segunda, simultaneamente, o âmbito do reconhecimento.” 6
Há aqui uma ampliação do espaço lógico das demandas sociais. No reconhecimento foi adicionado a redistribuição, e isso é mais afinado com as demandas das mulheres de nosso tempo.
VIII. Conclusão: o feminismo vêm obtendo ganhos emancipatórios reais
Pelo que foi visto, podemos apontar alguns caminhos abertos pelo feminismo. Eles são discernimentos profundos, reunidos tanto pelas atuais tendências internas do movimento quanto pela própria história do movimento feminista.
A própria história do feminismo parece nos dar uma tese otimista: na maioria das vezes que houve organização interna sobre demandas reais, sejam elas quais forem, as lutas pela aquisição dessas demandas foram quase sempre vencedoras e que qualquer nova demanda estaria apta a ocupar a ordem do dia do movimento.
Em outras palavras, as lutas entrelaçadas por reconhecimento e redistribuição empreendida pelas mulheres têm levado a ganhos emancipatórios reais. Além disso, parece-nos que qualquer nova demanda que fuja do âmbito do reconhecimento-redistribuição, pode ser absorvida pelas lutas feministas.
Exemplos empíricos corroborariam nosso argumento, por exemplo a lei de parité francesa (loi relative à l’égal accès des femmes et des hommes aux mandats électoraux et fonctions électives, promulguée le 6 juin 2000.)
Finalmente, para retomar nossa primeira discussão: a luta por reconhecimento-redistribuição se move sobre a lógica da democracia representativa. Esta deve garantir uma conexão forte e contínua entre representantes e representados. Só assim as demandas geradas no interior do movimento feminista podem um dia transbordarem para a esfera de direitos (Young). Lembramos que essa democracia complexa é um continuum quase metamorfo entre democracia direta e indireta (Bobbio). Em último lugar: o movimento feminista se beneficia e se amplia em relação diretamente proporcional à ampliação da democracia sobre a burocracia e a hierarquia.
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